Pressuposto de leitura é um critério que você usa para ler um texto. Ele funciona como uma espécie de chave de leitura. Mais metaforicamente, dá-se como se você usasse papel celofane nos olhos, e enxergasse o texto que lê da mesma cor do filtro. Isso existe?
Bem, vamos em partes. Primeiro, existe como risco. Todo mundo corre o risco de ler assim. Por exemplo, todo crente, quando liga o automático, lê assim a sua Bíblia. E o fenômeno é tão bairrista que crentes de uma denominação lerão de uma forma (todos) e crentes de outra, também todos, de outra forma, porque os filtros de cada igreja são específicos dessa comunidade, e não de outras. Não sabem o que está ocorrendo. Apenas reproduzem o modelo. Correram o risco e caíram feio.
Segundo, pode-se ler assim de propósito. Esse é o caso de quando você decide usar uma chave de leitura que você tem consciência de estar usando, e promove leitura a partir dessa chave. Por exemplo, leituras alegóricas do Antigo Testamento, mais precisamente, leituras cristológicas (porque toda leitura cristológica do AT é alegoria, e nada mais). Bem, quando o crente encontra Jesus no AT, mas sem sequer saber que está praticando alegoria, estamos no caso um, isto é, leitura viciada por costume e "sem querer". O caso dois se dá apenas quando o leitor sabe que o texto não fala nada sobre Jesus, mas, porque quer encontrar Jesus no texto, usa alegoria para colocar Jesus no texto. Se sai de lá dizendo que "encontrou Jesus", então é um tolo ou um vigarista, porque ele sabe que foi ele que colocou Jesus lá, e se, em vez de confessar isso, diz que "encontrou" Jesus lá, como se Jesus estivesse lá, então mente. É de todo legítimo usar de propósito filtros - pressupostos - para ler textos, desde que se confesse isso.
Seria o caso de dizer que há um terceiro tipo, que na verdade seria o único tipo, como querem muitos teóricos engajados? Seria o caso de dizermos que toda leitura só pode ser desse tipo, leituras que fazem o texto dizer o que o leitor quer, leituras "com pressuposto"? É verdade que o tal "círculo hermenêutico" - a rigor, um círculo viciado, uma prisão hermenêutica, uma fatalidade, existe? Eu só posso mesmo encontrar em um texto o que eu já tenho, e nunca nada novo, que eu não possua? É como, em 1984, dizia o falecido Croatto, que toda exegese é apenas eisegese?
Bem, minha resposta é: não. Não é verdade. Não existe fatalidade hermenêutica. Inventaram isso. Leitura com pressuposto pode se dar por vício ou por programação, mas nunca por fatalidade. Não é incontornável, incorrigível. Não é impossível sair dos pressupostos tradicionais e nem é obrigatório que se usem filtros de propósito.
Uma prova vem de Hasel, autor conservador. Ele conta como, na Reforma, a Bíblia passou de auxiliar e fundamento da Teologia para sua rival, e isso em cerca de trezentos anos. A explicação vai por minha conta. No princípio, protestantes brigavam com católicos: a Bíblia servia de auxiliar (nem precisavam abrir!) de protestantes contra católicos: vocês têm o papa! Depois, protestantes brigam com outros protestantes. Nessa fase, porque ambos têm a Bíblia, devem abrir a Bíblia e esfregar sua leitura na cara do outro, para provar sua própria correção e o erro do adversário, que faz o mesmo com ele, como até hoje, sem exceção. Mas na terceira fase, um pequeno número de leitores protestantes começaram a perceber que suas próprias leituras estavam erradas, que a sua tradição não tinha sustentação nos textos, que suas doutrinas são se alicerçavam na Bíblia, e, nesse momento, a Bíblia tornou-se rival da Teologia. Em 1787, Teologia Bíblica e Teologia Sistemática se separaram, para nunca mais se reunirem - salvo nos luares onde uma continua a estuprar a outra...
Fosse verdade que a leitura só pode ocorrer com pressuposto, a crítica bíblica não teria sido produzida pelos pastores luteranos e reformados dos séculos XVI a XVIII. Mentem quando nos dizem que a crítica bíblica foi produzida pelo Iluminismo. A crítica foi produzida por religiosos que, de tanto zelo pelo texto, passaram a superar a leitura homilética e doutrinária, e conseguiram arrancar, das páginas, os escombros da tradição. Que, finalmente, conseguiram ler os textos... Certo que permanece para eles, e para todos, o risco de sempre cair na vala dos pressupostos inadvertidos. Mas se trata disso: risco, não de um destino, de uma praga, de uma camisa de sete varas... Quem estudar suficientemente, quem adquirir suficiente autonomia, há de adquirir competências para a leitura sem filtros.
Gostaria de saber por que inventaram essa conversa fiada de que só existe leitura com pressuposto, leitura de encomenda, leitura de gueto. Para boa coisa não serviu, como não serve até hoje...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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