1. Aqui, há que se ter pelo menos um cuidado: cair na vala comum de tratar "Deus" como bom e o "diabo" como mau. A distinção "Deus" e "diabo" constitui-se uma saída cultural de judeus pós-exílicos, uma vez que, privado "Deus" de sua condição de fazer o mal/mau, alguém teve de levar nos ombros os fardos do outro lado do dia...
2. Dito isso, vamos ao que interessa.
3. Se - e isso é importante, essa condição primeira: se analiso a questão do ponto de vista da condição psicológica do sujeito, não faz diferença se ele é um escravo de "Deus" ou do "diabo" - ele é um escravo. Um negro preto de África, pergunte a ele se faz diferença ser escravo de católicos, no Brasil, ou de protestantes, nos Estados Unidos... Escravo é escravo.
4. Aos olhos brancos de cá e de lá, um negro preto não era gente: era bicho de amarrar em arado. O fato de que brancos estupravam negras não lhes dava, a elas, a condição de seres humanos, porque homens do campo estupram porcas, cabras, galinhas e até éguas e vacas, porque a demência peniana humana não tem limites...
5. Assim, ser bicho na mão de padre ou de pastor, tanto faz...
6. Escravo.
7. O negro preto que não se admitia essa condição morreu tentando fugir. Fugiram, muitos. Outros, morreram morte matada e feia, dolorida e pedagógica, morte de ensinar a negros pretos outros que quem fugir perde olho, pele e vida...
8. Mas os homens são humanos: muitos acostumam-se à ideia. Há o pão... E, então, depois de acostumada a ideia de que se não é mesmo gente, é-se bicho de patrão, começam-se as medições: é melhor viver nos Estados Unidos como escravo, porque, em duzentos anos, se chega a Obama. No Brasil, só até o STF por enquanto. Questões comparativas: os benefícios comparativos de se ser escravo de João ou de José... Há quem até deixe furar a orelha...
9. Você começa a comparar os benefícios de ser escravo de um e de outro. O escravo de "Deus" faz as suas contas. O do "diabo", as dele. Pascal era homem de ábaco e fez contas, e chegou à conclusão de que era melhor ser escravo de "Deus". Sade fez as dele, e sou forçado a admitir que os ábacos de um e de outro estavam viciados, porque as contas de Pascal sempre davam o resultado que Pascal queria, ao mesmo tempo em que as contas de Sade ratificavam seu sadismo...
10. Para isso servem os ábacos da retórica...
11. No fundo, acostumamo-nos. A noção de escravos já nos tomou a alma. A distinção - "mas escravos de Deus" - serve apenas para dar a nós a sensação de que, afinal, é boa a vida de escravo: conquanto saibamos que o Senhor de Escravos matará a todos os negros pretos que, no fim, desobedeceram...
12. Não mudou nada...
13. Assim, voltemos os olhos para os desacostumados, os pretos negros que querem voltar para África, de onde saíram, e começar de novo. "Deus", lá, o "diabo", acolá, e nós, bem, nós caminharemos soberanos de nós mesmos. Se eles querem vir, que venham - não os expulsaremos: mas deverão saber que, dessa vez, seremos livres...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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