Lendo Eliade, deparo-me com o caso comum: metade dos livros dá Ahura-Mazda como sendo o deus bom ao lado de um deus mau, e a outra metade, Eliade entre eles, dando Ahura-Mazda como o gerador dos dois espíritos, um, que escolhe o bem, e outro, que escolhe o mau. É uma problema a literatura da área...
A questão aqui é outra.
Eliade, no História das Crenças e das Ideias Religiosas (I, 295), fala que o espírito mau teria escolhido o caminho mau, de sorte que a culpa pelo mau não é, então, do próprio Ahura-Mazda, que, a despeito também de sua presciência de divindade, opta pela liberdade dos seres... Já li isso em outra teologia...
Eliade, então, faz um comentário: as contradições se dissolvem na divindade, que representa um estado de síntese superior ao dualismo baixo... Se eu fosse um papagueador de ideias, correria para um artigo para divulgar essa percepção "profunda" de (sem ironia) meu grande Eliade: no nível da divindade, as contradições se dissolvem! Quantos artigos de pastoral isso não dá? Não cometeria pecado algum, eu, se, num grande final retórico, transportasse esse comentário então para a Teodicéia cristã, para defender o deus cristão das mesmas acusações danosas dos críticos da teologia: é a liberdade humana, estúpido!
"As contradições se dissolvem na divindade", é o arrazoado de Eliade. Diante do que ele claramente percebe como contradição: um deus cria dos espíritos, um bom e um mau, imediatamente Eliade corre para extrair daí um princípio filosófico. Pergunto-me: justifica-se?
Para mim, trata-se tão somente do fato de que os mitoplastas, historicamente falando, estão a serviço de projetos político-teológicos. Não estão elaborando princípios filosóficos, eu penso. Quando criam as narrativas, estão concentrados em seus objetivos, "cegos" para toda e qualquer implicação outra do texto. Por isso, as contradições - que contradições permanecem.
Não são narrativas totais e completas: têm apenas a intenção de responder a uma pergunta, nada mais. É como se, depois de lermos Adão e Eva, tentássemos encontrar um princípio filosófico no fato de que, se são todos filhos e filhas de Adão, ele terá de copular com suas filhas - ele ou os irmãos delas, para que se cumpra a ordem da divindade de multiplicarem-se. "No nível da divindade", nós arrazoaríamos, "as contradições se dissolvem". No "nível da divindade", não há incestos...
Não, não se dissolvem, não, porque: a) simplesmente não há "nível da divindade", nunca, já que são sempre "humanidades" a escreverem desde suas humaníssimas condições contraditórias, e b) porque quem compõe as narrativas sequer se dá conta delas, já que está simplesmente a serviço de um projeto.
É como alguém que, para cobrir um monte de estrume, cava um buraco e, com a terra dali tirada, cobre a bosta toda. Ao retirar-se do lugar, acaba caindo no buraco que cavou... Mas vem o filósofo da religião e conclui que no nível da divindade não há nem bosta nem buraco...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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