quinta-feira, 19 de junho de 2014

(2014/622) Porque as Ciências da Religião podem ser realmente ciências das religiões


Um amigo me perguntou hoje, em privado, se eu acredito que cursos de Ciências da Religião (ou qualquer dos outros dois nomes no mercado) podem ser mais do que cursos de teologia secularizados.

Eu disse que sim.

Se ele me perguntasse sobre se cursos de Teologia podem tornar-se realmente - mas, por favor, estou falando realmente mesmo - não confessionais, eu gastaria um bom tempo pensando, antes de responder. Por meu gosto, sim. Na prática, não saberia dizer.

Mas cursos de Ciências da Religião, não titubeio: sim, podem ser mais, muito mais, podem ser até outra coisa completamente diferente de teologia secularizada. Não há necessariamente nenhuma relação entre Ciências da Religião e teologia confessional. Se há, não é Ciências da Religião.

Talvez o problema não esteja tanto nos cursos. Talvez esteja mais nos docentes. Você sabe o script, sabe o que tem que dizer para que um curso seja de CdR - e não de Teologia. Então, você escreve. A questão é se você, docente, é de fato um praticante de CdR e não um praticante de teologia disfarçado de praticante de CdR.

Eu confesso que tenho alguma dificuldade em admitir de pronto que um teólogo confessional consiga - mesmo - fazer Ciências da Religião. Em algum ponto do processo de reflexão, ele terá de se trair, e, sob tortura, toda carne se trai...

Em seus papiros Papillon já me dizia
Que nas torturas toda carne se trai
Que normalmente, comumente, fatalmente, felizmente
Displicentemente o nervo se contrai
Oh, com precisão

Mas, se mesmo um teólogo se fez, por opção e conversão epistemológica interna, total, honesta, um praticante das Ciências da Religião, então é para ele possível olhar desde fora, criticamente, científico-humanisticamente, o que significa esvaziar completamente a própria relação com o mito, sair dele, olhá-lo de fora, como quem olha todos os mitos.

Ao verdadeiro cientista da religião, é possível fazer com os mitos da religião que lhe (foi) (é?) própria o mesmo que ele faz automaticamente com os mitos de todas as demais. Todavia, se ele guarda para a sua mitologia, para a sua fé, uma dimensão de respeito e valor distinta da que guarda para os demais mitos, então ele não tem condições de fazer Ciências das Religiões.

É como o teólogo que inventa alguma coisa como "antropologia teológica". Ora, isso não existe para além dos muros dessa mitologia - o máximo que poderíamos dizer é que cada mitologia inventa sua própria antropologia. E talvez essa seja a diferença radical entre teólogos confessionais - e há outros? - e cientistas da religião (que não sejam teólogos disfarçados): os olhos do cientista da religião são olhos não confessionais, não comprometidos com a verdade do mito, são olhos críticos, são olhos feuerbachianos, para dizer o mínimo.

Sim, meu amigo, sim: é totalmente possível um curso de Ciências das Religiões totalmente livre de proposições teórico-metodológicas comprometidas com fé religiosa. Basta vontade política para isso.








OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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