Trecho, ainda sem revisão, de um artigo que estou escrevendo, sobre o sentido da palavra "satan" na Bíblia Hebraica.
O Sä†än que se coloca à
direita do grão-sacerdote Josué ali está para acusá-lo. Em hebraico,
evidencia-se o jogo de palavras entre os termos “o acusador” (haSSä†än) e “acusar” (lüSi†nô) (Zc 3,1).
Isso me parece indicar que o eixo da narrativa constitua justamente essa
acusação. Qual seja a acusação que o Sä†än apresenta
contra Josué, isso se pode identificar por meio das respostas que o Mensageiro
de Yahweh dirige àquilo que funciona como as acusações não explícitas, mas
respondidas, do Sä†än. A cena, então, pode ser
interpretada como um “julgamento”, no qual o Sä†än exerce
as funções de promotor e o Mensageiro de Yahweh, de defensor. Uma vez que as
acusações não são explícitas, só se pode recuperá-las por meio da análise
retórica da defesa.
O
primeiro pronunciamento da defesa é este: hálô´ zè ´ûd muccäl më´ëš (“acaso não é este um tição tirado do fogo?” (Zc 3,2). A forma verbal é
própria de uma ação efetivada sobre o sujeito por um terceiro – acusativo passivo:
ele, Josué, esse tição, foi tirado do fogo. Parece que está implícito que
Yahweh, representado pela defensoria, declara que ele mesmo o tirou do fogo. A
ideia se encontra – no mesmo sentido – em Amós 4,11, onde também um tição é
tirado do fogo. No contexto de Zacarias, a resposta da defensoria faz sentido
se a acusação trabalhava com a afirmação de que Josué estivera no fogo – essa,
então, seria precisamente a acusação: Josué, pretenso grão-sacerdote, fora, na
verdade, um dos homens lançados ao fogo. A defensoria, por sua vez, não o nega –
todavia, ela, a despeito de não negar, acrescenta que, apesar de Josué ter
estado no fogo, Yahweh o tirou de lá, como se tira uma brasa da fogueira. Se
fora caso de ter estado no fogo, não é mais – e não é mais por uma decisão da
divindade.
O
fogo, portanto, parece ser uma figura para o cativeiro. Josué, com efeito, é um
dos homens da golah. Retornando décadas depois da deportação, a golah ensaia
assumir o poder em Jerusalém. Alguém, todavia, reage: mas como pode você
pretender governar sobre nós, você que foi deportado, mandado ao cativeiro,
castigado pelo fogo do juízo divino? A defensoria não pode negar o evidente
fato de que, com efeito, Josué esteve, até ontem, no cativeiro. Tão pouco a
defensoria está em condições de negar que se tratara de “fogo” – isto é, de “castigo”
(seja como for, de uma situação da qual é-se necessário tirar alguém). Assim,
só resta à defensoria assumir o discurso da acusação, mas superá-lo: sim, Josué
esteve no fogo – isto é, no cativeiro, ou seja, no “castigo” –, mas, agora,
como se faz com uma brasa de braseiro, Yahweh o tirou de lá, Yahweh o trouxe,
Yahweh o quer como governador do povo.
O
julgamento não termina. A narrativa avança para constatar outro problema: Josué
está vestido de vestes sujas (Bügädîm cô´îm) (Zc 3,3). Assim
como assumira o fato do cativeiro/castigo, a defesa igualmente não tem
dificuldades em assumir que o grão-sacerdote está com as vestes impróprias,
sujas, conseqüência, certamente, de seu período de castigo na Babilônia.
Está-se, aí, na continuidade do discurso acusatória da promotoria – que condições
tem o grão-sacerdote de se apresentar como tal, ele que se encontra vestido de
vestes sujas...? Da parte da defesa, da mesma forma como se assumirá a condição
de “cativo castigado” de Josué, assume-se, agora, que ele, de fato, se encontra
impropriamente trajado. Mas essa anuência entre a defensoria e a acusação
funciona apenas como trampolim para mais um argumento da defesa: ordena-se que
as vestes sujas de Josué sejam tiradas e substituídas por vestes limpas (Zc
3,4). Isso tem o significado de torná-lo “justificado”, “limpo”, “puro” – “eu
tirei de ti a tua iniqüidade” (he`ébarTî më`älÊkä `áwönekä).
Com
vestes limpas, um tição tirado do fogo, Josué está declarado em condições de
cumprir a determinação de Yahweh – se ele guardar os seus caminhos, Yahweh o confirmará
como juiz de sua casa (Zc 3,7). Até esse momento, a narrativa tratava de confrontar
a acusação. Vencida a acusação e “inocentado” o réu, a narrativa, agora,
volta-se à retórica da legitimação de seu papel de grão-sacerdote: na condição
de que guarde os “caminhos” de Yahweh, Josué será colocado como “cabeça” em
Judá.
Pois
bem – toda a peça de defesa permite entrever no “acusador” ninguém mais do que
o “povo”, em sentido amplo, ou grupos político-religiosos específicos que, em
face do retorno da golah e, particularmente, da pretensão de Josué de tornar-se
grão-sacerdote e, conseqüentemente, assumir o governo da “nação”, insurgem-se
contra o recém-chegado, acusando-o de não ter condições de assumir o governo
por força de seu estado de “pecado”, mais especificamente pelo fato de ter sido
castigado por Yahweh, logo, rejeitado. O castigo é assumido como fato, mas a
defensoria contorna as implicações dessa memória evocada e declara o proponente
ao cargo um homem justificado e inocente, justo e limpo, levado a essa condução
por ninguém mais do que o próprio Yahweh.
Isso
posto, resta dizer que nesse Sä†än não há qualquer indício de um “diabo”.
Sequer se pode entrever aí uma espécie de “embrião” do que, mais tarde, viesse
a ser, aí sim, um “diabo”. O uso do termo Sä†än nessa
passagem reveste-se do sentido prosaico do termo: acusador, adversário, e serve
para tão-somente classificar, em registro metafórico, o contingente da
população de Judá que rejeitou a golah e acusou-a de profanada. Sä†än aí não passa da própria população, adversária explícita
e acusadora dos recém-chegados sacerdotes judeu-babilônicos.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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