terça-feira, 13 de agosto de 2013

(2013/864) Do mal - reflexões incipientes





Do mal


Eventualmente, não há “o” mal. Em última análise, não há mesmo “o mal”. Não o mal como alguma coisa que se pudesse apontar, a coisa pela própria coisa: o que é aquilo?, ah, aquilo é o mal. O que se costuma chamar de “mal” constituiria muito mais um desdobramento secundário propriamente relacionado à emergência humana na história do Universo. E, mesmo assim, dependente da emergência humana.

Cenas. Cena um. Um menino está batendo com uma grande pedra sobre uma lata de ervilha, dentro da qual vão pedaços de vidro de garrafa, porque quer moer o vidro para, com isso, fazer cerol para a linha da pipa. Erra o golpe, acerta o indicador direito, e, trinta anos depois, ainda pode ver a cicatriz, mesmo agora, enquanto digita.

Cena dois. Há uma sala. Um homem está amarrado a uma cadeira. Há um outro homem, que se aproxima. Tem um alicate na mão. O alicate comprime a ponta do dedo do homem que está amarrado na cadeira. O isolado da sala não permite que mais ninguém, além dos dois, ouçam o urro que se produz.

Cena três. Um menino e uma menina, irmãos. Há uma calçada. Uma tampa de Leite Ninho. Um sol escaldante. Aquele efeito-vapor sobe da calçada. A tampa ferve de quente. Os meninos põem sobre ela uma minhoca. O animal salta, poder-se-ia dizer, em desespero. Pára. Tosta. Frita. Esturrica.

Cena quatro. Um leão, uma leoa recém-parida, e leõezinhos. A leoa descuida-se. O leão aproxima-se da prole. Morde um, dois, três. Não os come, apenas morde. A leoa avança. Salva apenas um. Os outros estão ali, ensangüentados. Mortos, naturalmente.

Cena cinco. Uma montanha, sob cujo sopé estende-se uma floresta luxuriante, pululante de vida – insetos, vermes, bactérias, fungos, plantas, animais. Súbito, uma erupção, lava escorre, quente. Depois de passar, literalmente, sobre a floresta, jaz ali um manto enegrecido de morte.

Cena seis. Um planeta vaga pelo espaço. Carrega um mundo de vida. Súbito, entra na rota de um meteoro muito grande. Ele atravessa a atmosfera e choca-se contra o solo, com a força de milhares de bombas atômicas. A maior parte da vida do planeta ou morre, imediatamente, ou nos dias, semanas e meses seguintes.

Pergunta. Onde está o mal, nas cenas acima? Na cena um, trata-se de um acidente. Previsível, já que pedras pesadas e cortantes e carne humana não combinam muito exatamente, e a mãe do menino acabara de berrar, lá da varanda, que tivesse cuidado. Agora vai ela levar o pobre ao médico, a costurar-lhe o dedo. O ferido não tinha a intenção de ferir-se. Mas o risco estava lá, à espreita, o tempo todo.

A cena dois descreve uma operação de tortura. Talvez seja uma tortura – em tese – “necessária”, talvez não. O fato é que há uma intenção humana de ferir um ser humano. Boa intenção, má intenção, não importa.

A cena três descreve alguma coisa que minha irmã e eu fizemos uma vez, para meu remorso eterno, eu diria. Trata-se da intenção de ferir um animal. Uma estética da dor, eu diria. Poder-se-ia dizer, psicologicamente, que a intenção de divertir-se seria maior do que a de ferir, propriamente, o verme. A que os pais do bicho poderiam eventualmente perguntar pela diferença faz isso faria para ele.

A cena quatro leva o problema para o mundo zoológico. Diz-se que o leão faz isso para que a leoa entre no cio, porque, se ela amamenta, demorará muito tempo para que o leão possa, novamente, fazer aquilo para que existe: fecundar a leoa. A vida mata para que possa haver mais vida.

A cena cinco descreve as conseqüências de uma erupção vulcânica, e ela está ali de propósito, porque há quem possa dizer que o leão mata os filhotes por causa do “pecado original humano” que, por essa teologia muito conhecida e difundida, teria contaminado a “criação”. Por essa ótica, não haveria, então, vulcões no Paraíso, e, se houvesse, cuspiriam lava somente para o lado de lá.

A cena seis descreve a teoria da extinção de grande parte das espécies do planeta, há milhões de anos, pela queda de um meteoro gigantesco na região do atual Golfo do México. Vale para ela o mesmo que para a cena cinco: “no princípio”, na havia meteoros, e, se houvesse, a Providência os desviava de nós.

O que há de semelhante em todas as cenas? O exercício da força sobre um elemento terceiro. A pedra no dedo, o alicate no dedo, o verme na chapa, as presas nos filhotes, a lava na floresta, o meteoro no planeta. O exercício da força sobre terceiros desfigura-lhes a forma estável, e causa destruição. De modo que se poderia falar desses eventos, todos, como processos de desconfiguração de formas estáveis, mediante a aplicação de força externa.

Esse exercício da força sobre terceiros não é necessariamente intencional. Em primeira instância, é conseqüência do modo como opera o mundo físico – movimento. Aliás, quanta força não se exerce contra terceiros no mundo subatômico? E no astrofísico? Ora, essa força é sempre, ao mesmo tempo, destrutiva, ou seja, ela corrompe a coesão formal dos elementos sobre os quais atua, e construtiva, permitindo, então, a emergência de novas ondas de formas, que se apropriam dos efeitos da própria força empregada sobre as formas anteriores. Pense-se numa floresta, que queima sob o efeito de um relâmpago. Primeiro, destruição, depois, criação. Pense-se numa tempestade, que fustiga o campo, derruba árvores, que, contudo, verdejam amanhã.

Pode-se dizer que o sol ardendo em fogo, destruindo partículas e convertendo-as em elementos químicos, opere no registro do mal? Pode-se dizer que a cheia do Pantanal, que leve à morte por afogamento uma quantidade enorme de animais, e por asfixia milhares de peixes, presos, depois, em bolsões isolados, opere no registro do mal? Pode-se dizer que um tamanduá, introduzindo sua língua, para isso própria, num formigueiro ou num cupinzeiro, opere no registro do mal? Ou que um terremoto submarino, produzindo um tsunami, e levando à morte milhares de pessoas, animais e plantas, também opera no registro do mal? Ou, tudo isso, no registro do bem? Há mal no Universo? Há bem, no Universo? Ou há apenas o que há, movimento e poder, força e destruição/criação?

De onde vem o mal?

Imagine-se aquele leão. Ele tem força. Ele faz o que quer com os filhotes. Então ele, subitamente, toma consciência de sua força. Ele toma consciência de que pode. E quer poder isso que, agora, sabe que pode. E, querendo, faz. E passa a exercer sua força incontrolavelmente, do ponto de vista de terceiros, mas intencionalmente, do seu próprio ponto de vista. Ele tem a força. Ele pode. Ele faz. E sua força, agora, destrói tudo quanto ele intencionalmente quer e pode destruir.

Digamos que um elefante, subitamente, descubra que tem a força. Que pode. E que, intencionalmente, conscientemente, porque sabe que pode, e quer, e faz, percorra cem quilômetros, destruindo tudo à sua frente, não por loucura, mas por gozo estético da força, da destruição, do poder do poder. Caso se trate de um fenômeno efêmero, fortuito, ocasional, só esse elefante, ou aquele leão, mais nenhum outro, e nunca mais, poder-se-á falar de mal? E quem falará de mal? Ele? As árvores derrubadas e pisadas? Os insetos esmagados? Os animais destroncados pelas trombadas violentas? Quem? Como um meteoro noologicamente inerte, o elefante cruzaria sua órbita, e o Universo sequer consideraria o caso.

Percebe-se onde se quer chegar?

Qual a diferença entre a força do meteoro, a força do leão e a força do homem? Não, não é a força – é a consciência da força. E não, não é a consciência da força, apenas do ponto de vista desse homem que a tem, mas a consciência da força por parte de muitos, muitos homens, igualmente fortes. É a consciência de exercer a força e de sofrê-la. É quando o homem vê-se como forte, e vê outros homens como igualmente fortes, e vê o vulcão como força, e o meteoro como poder. É quando o homem, forte, vê que é mais forte, e exerce sua mais-força. É quando o homem, sob a força de outro homem, ou do Universo, vê-se sem força, ou com menos força do que quem, agora, o força. É na consciência. É aí que nasce o mal. É na consciência, mas não, apenas, na autoconsciência, numa consciência meramente antropo-noológica. É na consciência exposta ao jogo social, desdobrando-se em cultura, em ética, em moral, em valor. O conceito de mal é princípio de consciência ecológica, nesses termos: consciência antropológica – consciência sociológica – consciência ecológica.

Não, o mal não é sequer uma coisa, uma entidade, um ser, um estado. O mal é um conceito. O mal é um desdobramento da consciência, que mapeia o “real”, e lhe dá nomes. O mal é noológico.

A moral, portanto, não é, também, uma coisa, mas um olhar sobre as possibilidades conscientes dos homens. Basta que eles desapareçam do Universo, ou até menos, basta que um vírus terrível contamine a todos, e lhes corrompa as áreas do cérebro que operam, físico-quimicamente, a consciência, e a moral desaparece, como se nunca houvera moral um dia. Ah, sim, eventualmente, os homens, inconscientes, tornando à sua existência meramente zoológica, continuariam a exercer força e destruição. Mas seria como um gato a brincar com um rato, um uma avalanche a soterrar coelhos. Nada além disso. É como se um chipanzé fosse treinado a atirar com uma metralhadora, e, tendo aprendido, fossem solto, com ela, na Vinte e Cinco de Março. Acabou-se a moral. O mal, c’est fini.

O mal é noológico e ecológico. O mal é hermenêutico. Ele não apenas depende da operação consciente humana, mas só existe por conta dela. Quando ela é suprimida, a cobertura hermenêutica dos acontecimentos e dos atos, então classificados como “mal” – ou “bem” – voltam a ser o que eram: meros fenômenos amorais, pertinentes à História do Universo. O que torna apropriado afirmar que não é o Mal que explica a história do universo, é a História do Universo que explica o mal.

O que não significa que não haja destruição. Ou criação. Há uma e outra. Mas o valor que lhes é aplicado é meramente noológico, perspectivista, hermenêutico. Quando Pascal dizia que o Universo não sabe, e de nada, é também do mal e do bem que ele não sabe. Mas um dia ele espirrou, pariu, sem querer, esse bólide, no qual vingaram fungos conscientes, que deram nomes e valores às coisas. Nomes e valores, contudo, que não são propriamente do Universo, mas, apenas, deles mesmos, existindo apenas enquanto eles mesmos existem. Os nomes e os valores, porque o que vai sob os nomes e valores, sem, contudo, esses nomes e valores, continuarão sua jornada épica muda, surda e cega.

O conceito noológico-ecológico de mal, hermenêutico, desdobrou-se em sistemas morais tantas quantas foram as culturas em que foi cultivado. Cada cultura operou o conceito em função de sua própria história circunstancial. À medida que os séculos vão se desenrolando, e a grande narrativa humana vai sendo escrita, dia a dia, culturas vão fundindo-se, pouco a pouco, e os respectivos conceitos de mal – e de bem – vão sendo adaptados uns aos outros, emergindo daí, dessa fusão, um novo conceito, macrocultural, como o conceito cristão ocidental, por exemplo.

Culturas que, durante essa grande saga, vão seguindo outros caminhos, e agrupando-se em outras conformações, manejam outros conceitos, e outros paradigmas, e têm do mal outro tipo de perspectiva. É natural, compreensível e lógico que seja assim. Não há mecanismos sobredeterminantes para a formulação do conceito noológico do mal. Que ele emerge em toda e qualquer cultura, sim, emerge, pelo fato de ser conseqüência da faculdade humana de tomar consciência de si, do mundo, dos seus atos, dos acontecimentos do mundo, e de, para além disso, enquadrar tudo isso em sistemas hermenêuticos operacionais, em face de sua movimentação física e sobrevivência no vasto mundo desde onde emergiu como consciência. Mas essa faculdade hermenêutica não se desdobra da mesma forma em todos. É a história dos grupamentos humanos coopera na determinação do modo como os conceitos serão desdobrados sobre o real.

História, como Ilya Prigogine insistiu tanto, depois de alguns séculos de uma física newtoniana atemporal. O Universo é amoral, sim, mas atemporal, não. E aquilo que se dizia ser ilusão humana, o tempo, mostrou-se o mais real fenômeno do Universo, constitutivo dele, de modo que a fé na atemporalidade do Universo é que aparece como ilusão, conceito importado, mesmo na física, da contemplação do Deus cristão sentado sobre um trono, acima do Tempo.

O Tempo, contudo, e a História, sua face, rege a jornada humana. As culturas se contaminam, ou se fundem, e o mal se desconfigura, se reconfigura, recua, avança. Não se poderia, sem muito esforço, destituir o conceito cristão de mal, e todo o sistema da conseqüente teodicéia, do seu elemento histórico casual, circunstancial, original, conforme se pode ler o esbarrão da cultura judaica com a cultura persa. O dualismo persa contaminou irresistivelmente o monismo filosófico da teologia judaico-sacerdotal incipiente, e o deus judaica já não podia, mais, fazer mal. O fato de que o Novo Testamento surge como uma imensa jaula teológica, onde chipanzés diabólicos saltam em todos os cantos, de todos os galhos, sobre todos, dentro de todos, é conseqüência direta daquele encontrão judaico-persa, e tudo porque os judeus não puderam inventar, como os persas, um deus para o mal. Sem dono divino, criaram-se-lhe centenas, milhares, milhões de mil demônios, cada pequeno mal sendo parido por um diabo.

Não é apenas o sistema que e hermenêutico, noológico e ecológico, seja esse que se acaba de arriscar desvendar, seja qualquer outro. As associações entre o sistema, noológico, e os atos humanos e/ou os acontecimentos naturais, isto é, a classificação hermenêutica destes, é, igualmente, cultural, de modo que dizer que isto é mal, e aquilo é bom, constitui operação meramente cultural, dependente da cultura, inexorável em relação a ela. Dissolva-se a noção de cultura, de intencionalidade humana, de consciência, e acaba-se o sistema em que se operam as classificações do mal e do bem.

Por outro lado, há maneiras de se dissolver o conceito de mal, hermeneuticamente. Uma vez que o mal consiste em conceito noológico, em interface noológica, ainda que a contraparte histórica, os atos humanos ou os acontecimentos naturais permaneçam, dissolvida a operacionalidade do sistema, ou construído um sistema que dissolva a consciência ecológica, dissolve-se, incontinenti, o mal. Por isso tanto o estruturalismo, porque dissolve a consciência num determinismo inescapável, quanto existencialismo, que reduz a consciência a uma mônada, dissolvem a relação com o mal. No caso do estruturalismo, Carlo Ginzburg disse-o bem, em Relações de Força. Suprime-se a consciência individual-ecológica humana, dissolve-se a História, dissolve-se o mal, dissolve-se a culpa. Assim como, no existencialismo, isolado em sua própria autoconsciência, sem liames estruturantes com o próximo, e mesmo o mundo, não há mais qualquer ponto de apoio sobre o qual uma noção de mal ou bem, certo ou errado, se possa sobre-erguer, e sequer razões para que se venha a erguer.

As noções relativas de mal e bem, hermenêuticas, noológicas, ecológicas, culturais, são conseqüência, contudo, na História Humana. São próprias dela. Quer-se, eventualmente, controlar o processo, como a leitura de Gn 2-3 deixa claro. Não pode cabe ao homem e à mulher decidirem, eles mesmos, o que seja bom e mau/bem e mal, mas, apenas, a “deus”. Ora, mas “deus”, aí, e em toda parte onde nomeado venha a ser, é noologia, tanto quanto o próprio mal, e, sempre, operado hermeneuticamente por (alg)uma consciência humana. Logo, ali, alguém quer que homem e mulher submetam-se ao que ele mesmo, o operador do sistema, determina como sendo bom e mau/bem e mal. Totalitarismo noológico.

Caso a humanidade venha a constituir-se como uma grande Família Eco-Planetária, resolvendo suas questões internas, relativas à fronteiras, valores, culturas, poder etc., estará aberta a possibilidade de um sistema eco-planetário relativo, também, à moral. Essa moral será planetária, mas não seria totalitária, porque seria fruto de elaboração crítica de , em tese, todos os componentes da família, e não, apenas, do “pai”. Ainda assim, o mal, aí, será noção ecológica. Não será ontologia. Não será teologia. Será, tão somente, sistema operacional noológico, plataforma de convívio propriamente humano.

Nesse sentido, talvez seja correto considerar que a Humanidade ainda não existe. É provável que a consciência tenha levado mulheres e homens a alcançar um grau de humanidade suficientemente consciente. Mas a Humanidade, não. Ela, ainda, paródia de si mesma, caricatura grotesca do híbrido animal-homem, destroça-se em loucura. Ainda há muita vontade de poder alijada de toda consciência de necessidade de abrir mão do poder. Onde isso acontece, não é que seja apenas a Natureza, agindo, mas um câncer, porque, ali, a Natureza sofre de uma patologia auto-imune, e devora-se a si mesma, num limbo entre o instinto e a consciência infantilizada.

É necessário que a Humanidade compreenda-se como emergência do Universo, mas uma emergência de um tipo absolutamente diferente – consciente. Somente quando ela o conseguir, estará em casa. Porque o Universo não nos pode receber de volta. Porque não podemos parar onde estamos, sob risco de aborto espontâneo. É preciso que caminhemos resolutamente para casa. E a nossa casa somos nós mesmos, os seres humanos, quando vivemos conscientes de que podemos, mas podemos não querer, e poder não querer é o que é propriamente humano. Dizer não quero é muito, muito mais poderoso do que dizer quero.

Quando chegarmos lá, individualmente, primeiro, e ecologicamente, depois, então saberemos que o mal é parte do Universo, mas somente porque nos lhe demos esse nome. Saberemos que por trás do nome está a própria História do Universo, e seu movimento perpétuo. Sabendo que e um nome, estaremos em paz. Haverá choro, ainda, mas não porque estejamos sob castigo. A bênção de ser humano é justamente o fato de que se pode sorrir e ser feliz, apesar dos momentos e que forças, quaisquer, se choquem contra nossa estabilidade.


Teremos de aprender a lidar com isso. E saber que também isso é a via. Por isso os músculos de nossas faces sabem sorrir, e chorar, porque nós podemos. Precisamos é aprender.






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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