Sem sursis
– o julgamento de
Yahweh
A
sala era gigantesca. Não, enorme mesmo, sem exagero. Muito grande, com uma
cúpula cujo ponto mais alto apenas se adivinhava aqui de baixo, já que é
impossível que uma cúpula seja construída com um buraco em cima – vai que
chove.
Yahweh
sente-se desconfortavelmente pequeno, e comenta, meio assustado, com Nehushtan:
_ Eles fizeram de propósito, não? Quero dizer, enfiar a gente aqui nesse
mausoléu dos infernos, grande como o diabo, pra eu me sentir menor do que sou.
Nehushtan apenas olhou a face assustada de Yahweh, bateu as asas, e arrumou-se
na cadeira: _ Dura demais essa cadeira.
Um
barulho muito alto, surdo, encheu o mundo – aquele lugar era do tamanho de um
mundo, mesmo. E soube-se que alguém entrava. Tão longe era a porta, que
primeiro chegaram os barulhos dos passos, pés contra a madeira secular,
milenar, da sala, e, somente depois, começou a desenhar-se, ao fundo, contra a
claridade da porta, ainda aberta, a figura daquele velho. _ Ah, ele chegou.
O
velho aproximou-se muito lentamente, muito solenemente, do grande púlpito,
desde onde a figura terrível do Juiz se pronunciava. Ele, o velho, trajava um
manto muito antigo, com mangas largas, de enfiar os braços todos, pano demais
para uma pessoa só. Nada sobre a cabeça – protocolo –, seus cabelos brancos,
compridos, lhe davam um certo ar de empréstimo a Gandalf, idéia que me vem
agora à mente, para meu desgosto, que deste eu até gosto.
Olheiras
profundas, de um roxo de chumbo, de boêmio, de cantor da noite. E que nada! De
fato, ele traz – sempre – consigo o seu pote. Um pote de vidro antigo, com
tampa ainda de ferro batido, cheio o vidro de formol. Carrega-o como a um
tesouro, e, pela posição, próximo do peito, com o braço virilmente apoiando-o
em seu peso, será natural tomar uma tal atitude como ostentação, orgulho,
vaidade, mesmo, que ele ainda não se terá arrependido de sua insanidade – ou
coisa pior.
_
Aproxime-se!
O
que fez. Não, contudo, sem antes, virar-se de um lado, lentamente, e,
desconfio, como a forçar que o vidro, colado ao peito, fosse observado por esse
lado do auditório, a platéia dividida como os dois lados do Mar Vermelho, tendo
ele, qual Moisés redivivo, atravessado o leito seco. Depois, virou-se também
lentamente, meneando a cabeça, em cumprimento – ele acha que isso é um
espetáculo!, não se lhe dá a gravidade da situação –, para o outro lado, também
onde apinhavam-se centenas, milhares de curiosos, todos sentadinhos, como manda
o figurino. Depois, sim, aproxima-se, a luz incidental de um candelabro batendo
sobre a superfície tagarela do vidro, exponde-se, lascivamente, o conteúdo
indecente.
_
Sabe por que está aqui, Agostinho?
Ah,
sim, eu acabei deixando de dizer – é Agostinho. Em pessoa. De Hipona. O
arquiteto. Eu diria tratar-se do plagiador dA
República, mas estamos na Corte, e convém prestar atenção.
_
Penso que sim, meritíssimo. Penso que sim.
_
Quem o representa?
_ Eu
mesmo, meritíssimo. Eu mesmo.
_
Sente-se, então.
Agostinho
olhou à esquerda do Juiz, desde onde surgiam inícios de degraus, espiralando-se
suavemente. Caminhou, pôs-se a subir por eles, deu duas voltas em torno do
centro, e sentou-se, lá em cima, na cadeira. De lá, pôde contemplar o
gigantesco auditório, as milhares de cabeças, o dobro de olhos, corações
palpitando, curiosidades escorrendo pelos poros.
O
Juiz até ofereceria o meirinho, para guardar o vidro, mas, sabia, Agostinho
recusaria. De fato, o vidro foi meticulosamente colocado sobre o joelho direito, firmou
o tronco, ergueu a face, levantou o nariz, e sorriu, ao mesmo tempo em que
dirigia um olhar para Yahweh, que, decodificado, dizia: “_ Tranqüilize-se. Está
tudo bem. Estou aqui, agora”.
_
Você poderia começar, Agostinho, apresentando seu depoimento a respeito do
acusado. Digamos, primeiro, dissertando a respeito de seu caráter, essas
coisas. Ao final, poderia, então, tratar especificamente do caso em julgamento.
Parece-lhe bem assim?
_
Naturalmente, senhor meritíssimo. Naturalmente.
Agostinho
levantou o vidro até a altura do peito, abraçou-o com um dos braços, e, com o
outro, apoiou-se no braço da cadeira. Levantou-se num esforço de aparentar mais
jovialidade do que, todos sabemos, realmente tinha. O Juiz distraíra-se por um
momento, consultado anotações e assessores – de fato, há um número enorme de
pessoas atrás dele –, e não vira o gesto de Agostinho, que já ia abrindo a
boca. _ Por favor, Agostinho, sente-se. Seu depoimento deve ser apresentado à
Corte, estando você assentado. É o protocolo. E, afinal, não estamos em uma, na
sua, igreja. _ Naturalmente, meritíssimo. Naturalmente. Ao que um constrangido
Agostinho voltou à sua posição, na cadeira, devolvendo ao joelho o vidro de
formol. Não gostou do burburinho que se fez, obviamente por conta de uma certa
animosidade da platéia em relação ao defensor de Yahweh. E, por causa disso,
tanto quanto para ver se silenciava a platéia, bradou um “senhores” bem alto,
que, subindo até as indiscerníveis alturas da cúpula, ecoou algumas vezes,
fazendo vibrar o salão inteiro. Nehushtan lembrou-se do dia em que um Isaías
atrevido aproveitou-se de seu descuido, e invadiu, também ele, os aposentos
sagrados de Adonay. Acho que foi por causa do efeito da voz contra a madeira do
salão, que o fez vibrar, como num terremoto, como numa forja.
_
Senhores...
...
e, num ímpeto, Agostinho põe-se de pé, suas juntas muito velhas rangeram, mas
ele agüentou firme, sempre, sempre, para sempre ostentando, abraçando-o contra
o corpo, aquele vidro. _ O que é que tem naquele vidro, Yahweh? Pergunta uma
Nehushtan curiosa.
_
Estamos aqui, reunidos, no dia do ano da graça do Nosso Senhor Jesus Cristo,
diante do trono da graça do Nosso Senhor Jesus Cristo, mercê...
_ Por favor, Agostinho. O senhor não pode – não
pode – discursar aqui.
_
Mas, meritíssimo, vê o povo. Ele pede.
_
Agostinho, por favor. Sente-se e reserve-se o dever de a p e n a s
apresentar seu depoimento a respeito do caráter do réu.
_
Mas, meritíssimo...
_
Senta, logo, Agostinho!
Não,
o som, a voz, não saiu da mesa do Juiz. Milhares de olhos, também o do Juiz, o
de Agostinho, buscaram freneticamente a fonte daquela ordem, Agostinho,
inclusive, antes de obedecer-lha, e ei-la, um Yahweh, de pé, dedo apontando
firmemente para a cadeira das testemunhas: _ Senta logo esse traseiro gordo
nessa cadeira. Agora.
Não,
juro. Foi exatamente essa a palavra que Yahweh usou – “traseiro”. Ah, sim,
muita gente, inclusive umas senhoras beatas, uns senhores sisudos da Opus Dei,
uns jovens seminaristas evangélico-protestantes brasileiros, e um sem número de
gente, constrangeu-se de que Yahweh pudesse usar um termo assim, digamos, tão
chulo. Eu, confesso ri-me por dentro, achando graça. Talvez a expressão tivesse
tido mais efeito se, em vez de “traseiro”, Yahweh tivesse dito “rabo” – _ Senta
logo essa rabo gordo nessa porcaria de cadeira, Agostinho! Não é? Mais incisivo,
mais realista até. No fundo, as pessoas que se enrubesceram, que se
constrangeram, não têm por hábito ler – traduzir que seja – os textos hebraicos
do seu Velho, digo, Antigo, digo, Primeiro Testamento, digo, Bíblia Hebraica,
digo TaNak, ai, meu Deus, quanto esforço para ser politicamente correto. Eu
aqui me recordo daquela passagem em Ex 33,18-23, especificamente ali, no verso
vinte e três, em que essa palavra, “traseiro”, é usada para referir-se ao
“traseiro de Yahweh”. Não, é verdade. Juro. Não me crê, vai lá e lê – no
hebraico, claro. É aquela passagem em que Yahweh, de forma sumamente
sarcástica, negando a “ele” – “ele”, apenas, que o nome “Moisés”, malgrado
constar das versões tão devotas, não consta, não, do texto hebraico –, sugere
tomá-lo, enfiá-lo numa buraco, ali, da penha, e, então, tapar com a mão a boca
do buraco – uma paródia da caverna de Elias, está claro. Tapado ali dentro do
buraco, lá fora, Yahweh passa. Quando termina, tira a mão, e, então, “ele” pode
olhar – mas não verá a face de Yahweh: verá, apenas, seu traseiro. Um Almeida
mais sutil preferiu “costas”.
_
Senta esse traseiro gordo aí, caramba! Yahweh insistiu, porque Agostinho
demorava-se a sentar-se. _ Agora! Agostinho respira fundo, olha ao redor, para
todos, todos olhando, agora, não mais para Yahweh, porque a cena inaudita já
fora assimilada, afinal, ele é Yahweh, mas para ele, a ver se vai, mesmo, rá rá
rá, pôr o traseiro gordo na cadeira. Pôs. Três anos e meio depois – tanto que
demorou. Mas pôs.
_
Ainda sou eu quem dá as cartas, Nehushtan. Ainda sou eu. Anotação: isso foi
dito por Yahweh, claro, a Nehushtan, óbvio, pelo que, mais tarde, pode-se
reconstituir, pelo depoimento de algumas pessoas próximas, que ouviram, apenas
elas, e juram, o cochicho dito em tom meio escuta-não escuta.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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