1. Quando Lutero determinou - sabia ele das conseqüências? Duvido! E, se soubesse, mudava de ideia! - que os neo-cristãos lessem a Bíblia, não eram mais dias em que, nos centros de estudos, no coração do Humanismo europeu, se ensinasse alegoria. Ah, sim, a Igreja refestelava-se, como sempre, nas leituras alegóricas da Bíblia, loucos a produzir ainda maiores loucuras, para delícia dos pesquisadores da recepção. Mas a Igreja - a sociedade cultural e de estudos caminhava a largos passos na leitura filológica e histórica (já, quase, histórico-crítica) de textos... Assim, pobre Lutero, entregou a Bíblia a um processo de leitura séria para o qual a Igreja não tinha remédios...
2. Em duzentos anos, a leitura da Bíblia corroeu, por dentro toda a doutrina, todo o dogma, toda a leitura cristológica, toda a recepção alegórica das Escrituras. Não sobrou nada. Nada ficou de pé. Os textos passaram a ser lidos profissionalmente e na tentativa de serem colocados em seu ambiente de origem - naturalmente que, dada a condição iniciante do processo, tudo muito incompleto, muito parcial, mas, para todos os efeitos, perfeito, enquanto compreensão do objeto que tinham nas mãos: textos, conquanto, ditos sagrados...
3. A Igreja não gostou. Reagiu, claro! Igreja, para todos os fins, é redil de doutrina: se a leitura da Bíblia desmonta as cercas, desmonte-se a leitura da Bíblia! E uma reação conservadora avassaladora simplesmente rasgou o tecido da Igreja, colocando Bíblia de um lado - que a Igreja usa alegoricamente até hoje, e os centros de estudos, imprestáveis para a Igreja.
4. Assim caminha a humanidade cristã até hoje - Bíblia, de um lado, Teologia (pastoral) de outro. Raramente, você encontra um teólogo que use a Bíblia de modo histórico-crítico: a moda é desancar o paradigma, tornar confortável a capitulação...
5. Todavia, no meio pastoral, há os "progressistas". Não, como os conservadores, também eles aderiram à crítica - talvez tão violenta quanto a deles - ao paradigma histórico-crítico. Todas as críticas lhe são feitas, não com o sentido de correção, mas como "desculpa" para aposentar o método que, de fato, não lhes serve.
6. Por quê? Porque o paradigma histórico-crítico não forma redil, não presta para levantar cercar e por lá dentro "ovelhas". Pelo contrário: é um arrebenta-cercas potencial. Não necessariamente que você pode usar o paradigma em casa e, no púlpito, fincar moirões... Mas, em termos potenciais, é uma dinamite! De A a Z, o que sobra? Nada.
7. Assim, os progressistas acabam precisando de metodologias que não sejam aquelas toscas e imorais que os fundamentalistas profissionais usam, manipulações grosseiras da alegoria - com a desfaçatez de fazer disso "leitura", quando é pintura... É preciso, pois, para eles, uma nova metodologia, de fazer diferente a mesma coisa...
8. E gostam, então, de empregar a neo-alegoria...
9. Neo-alegoria é como vou chamar, desde agora, aquela metodologia que não é nem humanista nem de todo teológica, que é um disfarce secularizado da mesma tradição pastoral que se fez e constitui à sombra das árvores em torno do redis.
10. Um caso ilustrativo. Gênesis 2-3. A pastoral clássica, alegórica, lê isso como a prova cabal, definitiva e divina do pecado original: uma excrecência filológica, mas, para fins de Igreja, esse redil de doutrinas, é por aí que se vai com sucesso. Os progressistas, todavia, sabem que isso é uma indecência - porque tanto o texto em si quanto a doutrina inventada sobre ele são perversas e más até a próstata.
11. O que fazem, então? Aplicam a mesma prática alegórica, mas nova: daí, neo. Fazem-se "humanistas" de ocasião - Gênesis 2-3 não fala do pecado original, eles sapecam a crítica à ortodoxia: fala da desumanização do homem. Ah? Desumanização do homem? Sim, eles dizem. Jesus, então, teria cindo para re-humanizar o homem...
12. O roteiro mudou? Não. Ainda é o projeto pastoral pintando seus quadros sobre as folhas palimpsestas da Bíblia. E uma neo-alegoria, porque não se elabora pela raiz teológica da retórica da fé, pega o atalho da linguagem humanista. Mas é alegoria, porque nem que o Sol se apague hoje, essa coisa de desumanização está lá, no texto - está na cabeça criativa do pastor-teólogo, que precisa de uma nova retórica para o velho púlpito.
13. Ele acha que avançou, que fez uma grande coisa. Está orgulhoso de si. Mas, no fundo, trabalha para as mesmas forças perversas que geraram aquele texto mau. Ora, como salvar um texto mau? Fingindo que ele é bom? Lendo alegoricamente essa maldade? São ingênuos? Será?
14. Leve um escorpião para a Igreja, mas diga a todos que é um louva-a-deus. Todos acharão lindo seu neo-louva-a-deus, porque sua retórica é hipnótica... Mas deixe-os levar para casa seu neo-louva-a-deus, e pô-lo na cama: de noite, ele os picará. O que digo? Que a maldade do texto permanece lá: o homem não presta, camponês é maldito; a mulher não presta, seu desejo, maldito; homem e mulher estão afastados de Deus e Deus os expulsa de sua presença; seu pecado é ter querido decidir por si mesmo o que é bom e o que é mal, coisa que só Deus pode - entenda-se, por favor, os homens de Deus, porque são eles que escrevem essas coisas e se arvoram em boca-de-Deus, ao inferno com eles! Homens maus, crias do inferno, a disfarçarem-se de Deus...
15. A leitura neo-alegórica troca os termos: não é maldito, é desumanizado. Nossa! Que beleza... O teólogo neo-alegórica aceita que os escritores do texto amaldiçoem os homens todos e as mulheres todas, ele ainda acata a maldade em sua retórica de flores de Jesus - ele ainda é "útil"...
16. Penso que o neo-alegórico deixa-se prender pela maldade do texto, se ele mesmo não o é igualmente mau.
17. Para mim, só há um jeito de ser ético e honesto com a comunidade: dizer-lhes quem escreveu esses textos, para que, com que intenção, e libertá-los deles. Eles precisam saber que esses textos lhes roubam a alma e a vida, disfarçando o vazio que lá resta com arroubos de fé. É preciso empoderá-los para defenderem-se dos homens de Deus, de Deus, da Bíblia - ainda que usando a própria Bíblia (meu caso).
18. Se não o fizermos, se usarmos de neo-alegorias da moda, estaremos apenas alterando a linguagem do projeto de 2,500 anos - mas ainda seremos funcionários pagos de Zadoque.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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