domingo, 24 de março de 2013

(2013/338) A Mãe Natureza e a Mãe Religião - e como elas adoram a morte


1. A espécie humana não se saiu mal. É a mais nova espécie do planeta dentre as muito bem sucedidas. Não temos cinco milhões de anos e, se considerarmos a espécie moderna, o Homo sapiens sapiens, dizem que não temos trezentos mil... Nada mal...

2. Há quem nos considere demônios...

3. Não sabem o que falam: são uns despeitados da espécie... Acredite: somos melhores do que qualquer outra espécie. Se exagero, ao menos me permitam dizer que não somos pior do que nenhuma outra...

4. Explico.

5. A Natureza é um moedor de carne. Trilhões de toneladas de carne, todos os dias, são devorados, os corpos ainda vivos, por todos os seres vivos. Os vegetarianos nos parecem pacíficos, mas eles devoram seres vivos - plantas são seres vivos. Insetos se comem vivos, os artrópodes, todos, quando não querem guardar para depois, como as aranhas. Alguns, dão remédio para dormir, para que os filhos devorem o sonâmbulo, quando nascerem. Os animais superiores, todos, devoram-se mutuamente. É matança dia e noite, quando dormem uns, acordam outros, a Natureza trabalha full time, parindo, matando - não cessa nunca o festim de carne e sangue...

6. Saímos daí: nosso instinto de predador veio daí. Não há nada de "pecado original" em nossa maldade - salvo essa marca de bicho que temos em nós, porque somos bichos, primatas, temos por mãe essa máquina fria de matar: porque ela descobriu que o preço da criação é a destruição: o Universo cria-se e recria-se pela destruição incessante das formas, ininterruptamente...

7. Mas não é só isso: não temos por mãe apenas uma Máquina insensível, amoral de matar. Temos por mãe aquela forma da cultura que tem uma relação freudiana com a morte: a religião. O religioso  tem orgasmos com a morte. Ela o seduz. Ele tem medo, ao mesmo tempo que a ama, que a deseja, porque a religião ensina, sempre - ou quase! - que a vida não vale a pena, e o que vale a pena está sempre do outro lado da... morte. Então, o religioso teme morrer, mas quer morrer, porque quer o que está do outro lado...

8. De modo que a morte faz parte das religiões: é mesmo uma deusa... Deus, o bom Deus cristão, quanta ironia!, é Deus somente enquanto pode matar - os teólogos discutem se um Deus que não tenha poder de matar quanto queira é Deus... Um Estado só é Estado se pode garantir o uso da força - que Deus seria esse com uma flor na mão e não uma espada?

9. De modo que nós, homens e mulheres, somos filhos da Morte e da Morte, duas vezes: a Morte natural, a Natureza, e a morte mitológica, a Religião. Que surpresa sermos essa espécie infeliz que somos?

10. Todavia, cavalheiros, concordemos: temos melhorado sensivelmente, e, penso, de modo acelerado. Temos recusado a força, ao menos, por enquanto, no mundo da reflexão filosófica e política, conquanto ainda a empreguemos de maneira bárbara. Mas a Declaração Universal do Homem - e da Mulher - é o documento mais importante da espécie, mais do que a Bíblia, mais do que todos os livros de religião juntos: é o dia em que saímos da Natureza e assumimos nossa condição de sobre-naturais, ao mesmo tempo em que recusávamos as injunções da Religião sobre a vida social e nos colocávamos em posição sub-sobrenatural.

11. Nesse dia, começamos a dizer: somos Humanidade, nem Natureza, nem Religião - somos uma espécie que pode ser diferente - ainda não é - de todas as demais. Podemos cuidar de todos, dos doentes, dos velhos, das crianças, uns dos outros, dos fracos, mais adiante, sempre evoluindo, dos animais, do planeta...

12. Não, não chegamos lá. Estamos longe... Mas olhe para trás. Olhe! Veja se não construímos todas as condições noológicas para darmos um salto existencial, tornando-nos Humanidade, isso que ainda é projeto e gestação?

13. Talvez não consigamos. Tendo por Mães quem tivemos, não me surpreenderei. Talvez nos matemos a todos com alguma guerra final. Talvez... Ou talvez não: talvez, finalmente, encontremos um jeito de nos libertarmos dessas mães de morte... finalmente...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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