sexta-feira, 8 de março de 2013

(2013/208) De Abraão, mas de Abraão mesmo, a gente não sabe é nada


1. Êxodo 6 é um texto importante. É uma fotografia de uma grande saída histórica - o momento, assim eu vejo, em que os camponeses "ganham" um pedaço da briga: seu antepassado tradicional, Abraão, é tomado como parte integrante da neo-tradição sacerdotal. Todavia, essa vitória se dá por meio de uma derrota - ver Abraão tornado um adorador de Yahweh, quando, a rigor, ele fora um adorador de El-Shadday.

2. Eu acho que o Templo precisava, de qualquer jeito, dos camponeses. Era preciso trazê-los para dentro da tradição. Para isso, todavia, seria necessário trazer Abraão - e esse era todo o problema: Abraão, e o povo sabia disso, era adorador de um deus diferente do deus do santuário.

3. O que a tradição sacerdotal fez foi transformar El-Sadday em Yahweh: e essa é a função de Êxodo 6. Ali, os sacerdotes redatores fazem Yahweh se apresentar a Moisés e lhe contar uma coisa, um pequeno segredo. Ele, Yahweh, fora adorado por Abraão, mas Abraão nunca soube disso. Abraão conhecia Yahweh apenas por outro nome, El-Shadday, e adorou El-Shadday por toda a sua vida, mas nunca soube que El-Shadday era Yahweh, nem o conheceu por esse nome. Todavia, El-Shadday, dizem os sacerdotes, era Yahweh, e, doravante, os camponeses podem adorar a Yahweh, porque Abraão, afinal, fora adorador dele...

4. Resolvida a questão da identidade do deus que Abraão servira, está na hora, agora, de escrever a sua história. Logo em Gênesis 12, Abraão já começa a adorar Yahweh... Bem, se Abraão não conhecia Yahweh, é óbvio que não podia ter invocado o seu nome, como quer Gn 12,8. Logo se vê que essa história só foi escrita muito tempo depois do grande acordo entre templo e camponeses - depois do século VI, no V, talvez, ou no IV.

5. Se esses arrazoados estiverem certos, nada nessas histórias está diretamente relacionado a Abraão. Tudo aí é o resultado de uma narrativa que, sendo obrigada a passar pelo centro de controle popular, projeta toda a ideologia sacerdotal no patriarca, fazendo dele, agora, um exemplo da tradição sacerdotal, conquanto se veja obrigada a negociar com memória traditiva popular aqui e ali - memória, todavia, que não pretende constituir o centro gravitacional da história.

6. Pouco a pouco, Abraão legitimará o Templo: sacrifica o carneiro, entrega os dízimos ao sacerdote, defende a exclusividade do culto javista...

7. Nada disso, de fato, é Abraão: esse Abraão é o produto de uma negociação histórica: sacerdotes e camponeses. 

8. A historicidade de abraamitas, isto é, de um grupo social que se conhecia pela referência a um personagem ancestral me parece garantida por pelo menos dois argumentos: a) o fato de os redatores terem sido obrigados a uma composição negociada dessa histria, o que revela conflito social em torno da personagem e b) a estela egípcia, do século XIV a.C., mencionando a existência em Canaã de um grupo identificado por esse nome. A historicidade da tradição, todavia, não é a prova de seu conteúdo - o que temos hoje é o resultado de elaborações programáticas em torno de projetos de intervenção social muito específicos: Abraão, no Pentateuco, já é massa de modelar...

9. E, se me permitem a franqueza, igual ao Cristo dos Evangelhos...





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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