1. Vou aqui reunir todos os que lidam com a Bíblia em apenas dois grupos. Trata-se de um exercício, nada mais do que isso. Sob outros critérios, poderia criar outros grupos, outros conjuntos, e dividir os usuários da Bíblia em tantos outros. Aqui, agora, crio esse dois.
2. O primeiro grupo é o que entende que os processos dos quais resultou a Bíblia foram processos de conflito - basicamente, mas não exclusivamente, conflitos de liderança político-religiosa (sempre ela!) com camponeses. Não é que não houvesse conflito dentro da própria liderança e, duvido que não, entre os próprios camponeses. Todavia, ainda não consegui mapear com alguma segurança (pessoal) esses conflitos. Aqueles, não sei ainda por que não escrevi um livro sobre eles...
3. Bem se vê que me incluo nesse grupo. A palavra-chave dele é conflito político-religioso. As tradições fundamentais da Bíblia são, todas, fruto de batalhas imensas, em que, sempre, ganharam os sacerdotes, depois que assumiram o poder. Antes, ganhavam os reis, mas, naqueles tempos, ao menos havia a profecia, para lhes pôr o dedo na cara. Depois, quando os reis acabam, e assumem o poder os "homens de Deus" (mas os reis igualmente o eram!), a profecia é simplesmente debelada...
4. O segundo grupo, já se deve ter imaginado, é o grupo que trata a Bíblia como resultado de totalidades harmônicas. Esse grupo fala de "Israel" como uma totalidade, a "fé de Israel" como uma totalidade - e totalidade harmônica -, fala das "tradições de Israel" como uma totalidade... Não, não se fala de batalhas aí, e, quando são nomeadas, é "Israel" contra os povos ao redor - a briga é sempre dos "judeus", da "fé" contra os "pagãos".
5. A palavra-chave aí é "harmonia totalizante", totalidade unânime.
6. Por quê? Vou arriscar um diagnóstico: porque a harmonia chancela a concepção de verdade revelada, esconde a condição obviamente cultural dessas tradições como se fora ela uma eternidade que escorre desde o mundo de Deus até as retinas e tímpanos dos homens de fé da Bíblia. Sem conflito, calados, passivos, ouvintes, aquela única coisa em que se converte Israel, aquele monólito mudo, torna-se um vaso inerte no qual se derramam as visões...
7. Se se encaram os conflitos, não há uma voz - há várias, e gritaria. Se há conflito, vem à tona o fato de que estamos, afinal, na História, na Cultura, na Sociedade - tudo que a "fé" considera passageiro e sem fundamento, porque a fé não é nem histórica, nem cultural, nem social, é eterna e revelada. Logo, os conflitos têm que ser escondidos...
8. O quê? As narrativas da ressurreição revelam que houve conflitos graves? Lucas conta uma história? Mudam a história? João a adultera ainda mais? Não, nada disso é relevante - relevante é "a" ressurreição, e arrastar-se a Bíblia como "prova" (mas, como assim, "prova", se as histórias que ela contam não batem?). A "história" de Abraão tem mais furos do que regador de jardim? Que importam os textos?! Conta-se uma história - sempre a autorizada, e danem-se os textos... Harmonia, gritam, totalidade, exigem, e se você mostra um texto que arranha a superfície perfeita da tradição, que se dane o texto...
9. É por isso que não acompanho argumentos que comecem a partir da "harmonia" da tradição. É falso. Não tem base na História - é a racionalização de uma fé que aprisiona...
10. A academia está cheia disso. Vejam aquele campeão do Norte, Childs. Ele inventou (se não inventou [acho que sim], tornou "defensável"]) a aproximação canônica da Bíblia. Na academia! Fora da academia, é só o que há, de modo que não há nenhuma novidade em Childs na EBD. Mas o senhor B. S. Childs fala à academia...
11. E vejam o que ele fala: oh, sim, a Bíblia, o cânon, é resultado de um processo de montagem. Mas a Bíblia é o resultado. Assim, não importa o processo. Importa o resultado. Importa o cânon. E, eis, estamos de volta ao banco da EBD - com outra língua, mas a mesma linguagem.
12. E o que fazemos com as informações que temos do processo, que revelam que o resultado não corresponde, em nenhum sentido histórico, à História, mas narra apenas a perspectiva formal e oficial de líderes religiosos em processo de controle social orgânico e programático? Não fazemos nada. Deixa pra lá. Pega o cânon do jeito que está e usa...
13. Genial. Naturalmente que, aí, não se está a serviço do conhecimento - mas da política, política eclesiástica, política de fé, política de Deus, dê-se o nome que quiser, é política. E a pior política possível, porque, no caso de Childs, não é feita por ignorantes - de que a política religiosa está cheia. Childs sabe como as coisas foram feitas, como as tradições foram montadas, inventadas, impostas.
14. E de que adianta saber? Bem, adianta saber para melhor esconder...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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