domingo, 12 de agosto de 2012

(2012/617) Entrevista com a serpente


_ Não, não se preocupe, não vou lhe perguntar se a senhora tinha pernas à época, não se preocupe...

_ O senhor vai me perdoar, mas eu não aguento mais dar entrevistas e me perguntarem sobre isso.

_ Mas a senhora deve compreender que ficamos curiosos...

_ Porque fui amaldiçoada a rastejar...

_ É, o que faz pensarmos que, antes de ser amaldiçoada, não se arrastava.

_ E, se eu não me arrastava, então andava, e se andava, então tinha pés...

_ Isso.

_ Mas é isso que me aborrece: vocês me fazem perguntas idiotas e dão respostas idiotas...

_ Nossa! Por que idiotas?

_ Por que a única alternativa seria eu ter pernas antes de ser amaldiçoada a me rastejar?

_ Ora, se não rastejava, então, tinha... pernas... não... Não!

_ Ah, acho que pela sua cara já entendeu...

_ A senhora... voava?

_ Ufa! Até que enfim...

_ Caramba! Nunca tinha pensando nisso até agora. Quer dizer que, antes da maldição, a senhora voava... Quer dizer que tinha asas?

_ É, isso mesmo... E mas arrancaram.

_ Estou pasmo.


_ Não devia, há outras histórias de serpentes voadoras...

_ Os serafins...

_ Velhos conhecidos. Transformaram-nos em europeus louros com asas de ganso, já viu?

_ Já - e os Querubins viraram nenéns rechonchudos... Coisas da tradição.

_ Como é que eles chamam? Recepção!

_ Isso. Recepção - história dos efeitos, estética da recepção...

_ Em outros tempos chamaríamos isso de deturpação. Um desrespeito à nossa memória...

_ Pois então, é sobre sua memória que gostaria de entrevistá-la.

_ Seja mais específico.

_ Aquela história da árvore...

_ Das árvores...

_ Sim, as árvores, mas me interessa não a da vida, mas a outra, a do conhecimento do bem e do mal...

_ Árvore do quê?

_ A árvore do conhecimento do bem e do mal, a outra, a que não podia ser comida...

_ Perdão: mas árvore do conhecimento do quê?

_ Do bem e do mal.

_ Não está certo...

_ Não?

_ Não. Deve ser problema da sua língua.

_ A senhora poderia ser mais específica?

_ Bem, meu senhor, a sua tradição transformou o que era uma coisa própria do campo político - o senhor sabe que religião, no final das contas, é apenas isso, não?, política... Pois então, a sua tradição transformou uma questão do campo político em uma questão do campo moral.

_ Não faço a menor ideia do que a senhora está falando...

_ Naturalmente, não comeu do fruto...

_ Sem gracinhas, por favor!

_ Como queira, mas não se esqueça de com quem está falando...

_ Tenha certeza de que não...

_ Deixe-me explicar. Não é conhecimento do bem e do mal. É conhecimento do que é bom e do que é ruim. Sabe alguma coisa de Hebraico? Tov e ra' - bom e mau, bom e desgraça. Transformaram em bem e mal...

_ Não alcanço a diferença...

_ Bem e mal são princípios morais, gravitam no campo da "inocência" e da "malícia" - bem ao gosto de sua tradição grega, não concorda? Mas tov e ra' são palavras concretas - bom e mau - e gravitam em torno da escolha, da decisão, da autonomia. Se você tem o conhecimento do que é bom e do que é ruim - e ter conhecimento é ter a autonomia de decidir o que é bom - para você - e o que é ruim - para você -, então, você é como os deuses, ninguém diz a você como deve viver sua vida - você a vive por você mesmo, porque você sabe - escolhe - o que é bom e o que é ruim...

_ Autonomia?

_ Sim, autonomia. Todo aquele episódio tem a ver com a gestão do direito em Judá. O direito era civil, por assim dizer, exercido pelos anciãos, nas portas, e pelo rei, em caso de gravidade. Não era "divino". O povo, por assim dizer, exercia o direito - decidia, por sua própria tradição, o que era certo e errado, bom e mau.

_ Estou acompanhando...

_ Também se trata de uma época em que o povo camponês tinha a seu dispor uma série de equipamentos religiosos: altares na vilas, templos mais ou menos espalhados, os altos arborizados, que eram lindos, acredite, as estelas, um sem número de imagens religiosas, inclusive de deuses e deusas, profetas, profetisas, sacerdotisas, necromantes, mulheres especialistas em poções, ou seja, cada família podia escolher como cultuar...

_ Caim!

_ Também. Ele sempre escolhera os altos arborizados. Gostava dos carvalhos, como Abraão. Sempre ia lá. Vi-o muitas vezes. Um dia, proibiram.

_ Foi tudo mais ou menos na mesma época?

_ Sim, meu senhor, essas histórias são todas mais ou menos desse mesmo período.

_ Continue, que lhe cortei com a menção de Caim.

_ Já o entrevistou?

_ Não. Está na minha lista, e já me cobraram.

_ Prepare-se. Ele tornou-se uma pessoa muito triste...

_ Imagino.

_ Não, não imagina.

_ Mas continue...

_ Sim, como eu dizia, os sacerdotes...

_ De novo os sacerdotes?

_ Alguma surpresa?

_ Não, mas já me acusaram de ter mania por sacerdotes...

_ Não se importe. Certamente não leram a história de seu messias, de como foi entregue aos romanos pelos principais dos sacerdotes...

_ Ele os provocou, não?

_ Bem, pergunte a Maria, meu senhor. 

_ Está na minha lista... Não sei se ela quererá falar do filho...

_ Ah, meu senhor, peça a ela para lhe contar sobre o dia oitavo...

_ Dia oitavo. Anotei. Que tem o dia oitavo?

_ Ela lhe contará...

_ Então, continue...

_ Então, os sacerdotes proibiram tudo. Tudo. Os camponeses foram proibidos de qualquer culto, em qualquer lugar, que não no Templo dos sacerdotes. Tiraram todos os seus equipamentos, e, quando não havia mais nada para lhes tirar, tiraram-lhe até o nome de Deus...

_ Proibiram-nos de pronunciá-lo, não?

_ Sim.

_ Dizem que era tabu...

_ Dizem o que querem. O nome divino parece com suas consoantes milhares de vezes nos rolos sagrados... Milhares. Que raio de tabu é esse que se pode escrever mil, duas mil, três mil vezes?! Tabu nada... É que quando não restava mais nada aos camponeses, ainda tinham o nome de seu Deus para invocar. E, então, tiraram-lhes até isso.

_ Entendo. Mas o que isso tem a ver com a árvore?

_ Meu senhor! Nunca leu Platão? A legislação, as regras do poder, as normas da "Cidade Bela" são regadas, na alma, pelos mitos. Os mitos fazem as leis eficientes. De um lado, proibiram tudo. De outro, disseram que Eva e Adão comeram do fruto da árvore do conhecimento do que era bom e do que era ruim, e, por isso, eram malditos, porque queriam ser como os deuses... Isso queria dizer que o camponês devia ficar de cabeça baixa, perguntando ao sacerdote o que ele podia fazer, o que não podia.

_ Entendo. Intencional isso?, a senhora acha?

_ Se acho? Você nunca leu a República? As Leis? São do século IV. O "pai dos filósofos" já ensinava a fazer isso, sem pudor - quanto mais não o fizeram os sacerdotes, que, eu apostaria, faziam-no sob orientação do Império, ou, quando menos, por influência dele.

_ A Pérsia?

_ Sim, inventaram o controle social dos povos subjugados por meio de sua própria religião.

_ E a árvore do conhecimento do bom e do mau, então, é um mito que legitima a submissão que os camponeses deviam demonstrar em relação aos sacerdotes...?

_ Sim. Todo bom camponês é camponês sem autonomia.

_ E a senhora os quis informar disso?

_ Mais ou menos. Nunca é tão simples. Mas digamos que eu represente, ali, o inverso do que o sacerdote quer, represente aquela voz da sociedade da época que é insubmissa, que é contrária às orientações do poder do templo. A mim, me arrancaram as asas. Ao messias, depois, a vida...

_ Deus do céu... Abel já me fez pensar em Caim como paralelo ao messias. Agora a senhora se insinua...

_ Eu me "insinuo"? Como "eu" me insinuo? Não sou a primeira serpente a ser comparada a ele, meu filho. Lembre-se de João, e o que ele fez com a serpente de bronze...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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