1. Há um ano, escrevi um artigo, em coletânea da UERJ, sobre cânon e exclusão de comunidades. Uma versão simplificada - abaixo - escrevi, pouco depois, para a Revista Theologando, da Fonte Editorial. Ambas as coisas se leem pouco. Assim, publico, aqui, a versão mais simples, caso haja interesse em ler alguma coisa sobre o que eu penso sobre as diversas formações de cânon "bíblico", todas elas relacionadas a exclusão de gente - para mim, cada cânon marcou, paralelamente, a expulsão de pessoas da comunidade: o novo cânon expurgava, então, de seu próprio rol de livros autorizados ("sagrados") a literatura que o grupo expulso empregava em sua polêmica com o grupo excludente.
Cânon
– Tradição, Inclusão, Exclusão
(coisas de corpo e celulose)
Osvaldo Luiz Ribeiro[1]
15 de junho de 2011
Falar
de “cânon” – judaico e cristão – é falar basicamente de tradição. Mas é mais do
que simples tradição: no cânon
materializam-se processos de inclusão e de exclusão bastante sérios, muito
graves. Não se trata, apenas, de listas de livros – as listas de livros
constituem o resultado de um conflito histórico-social e político-religioso
preciso, determinado, violento. A cada decisão canônica correspondem dias de
graves batalhas campais. Um tanto quanto metafórica a expressão – mas nem
tanto... Em torno do “cânon”, por assim dizer, estamos em guerra com “os
outros” – e os textos que os outros usam são, então, as armas que usam contra
nós...
Lutero versus os Deuterocanônicos e Tiago
Comecemos
pelo fim. Lutero – último homem na linha de frente. Para efeitos práticos, o
cânon protestante – aquele a que as igrejas protestantes e evangélicas aderiram
como tradição sua, constitui uma
posição ideológica diante do cristianismo majoritário do século XVI. O cânon de
Lutero não nasce de um processo “pacífico” de reflexão teológica – pelo
contrário: ele vem à luz com dores de parto.
No
campo de batalha teológico – mas, igualmente, político, social, econômico –,
Lutero “enfrenta” o cristianismo com sede em Roma e que, doravante, em face do
“cisma” luterano, ratificará suas auto-imagens: católica, apostólica e romana.
O pivô sobre o qual toda a polêmica há de girar é fixado sobre o tema da
“salvação”. Lutero defenderá a subjetividade da fé como resposta ao apelo
divino, em contraposição aos assim por ele interpretados como exageros das
indulgências.
De
modo bastante simplificado, é verdade, o conflito pode ser resumido no desafio
da “salvação pela graça, mediante a fé” contra a “salvação por meio das obras”.
Tomando o partido da fé e da graça, e fincando o pé contra as fileiras da
compra e venda de “notas de salvação”, Lutero finda por romper com a
Instituição-mãe e acha-se na posição curiosa de fundador das igrejas
protestantes – bem como evangélicas.
De
longe, observa-se a cisão no grupo: dois cristianismos emergem do conflito. De
um lado, “católico-romanos”, de outro, protestantes e evangélicos. À cisão –
isto é, à expulsão/deserção de um grupo em relação ao outro – corresponderá – e
aí temos um “padrão” – uma re-elaboração do “cânon”.
Lutero
marcará – definitivamente – o cânon – tradição institucional irreversível – com
a marca dessa batalha. Recusará os livros da Vulgata/Septuaginta que os
cristianismos originários e patrísticos reverenciarão após sua batalha
particular com o Judaísmo. Mas irá mais longe. De um lado, re-organizará
internamente o cânon do Antigo Testamento – a “ordem” cristã, mas o quantum judaico.
O “antigo” e o “moderno” marcarão essa “reforma”. E, todavia, ainda restará um
movimento radical – recusar categoricamente um elemento do cânon: Tiago.
Dificilmente
terá sido por outra razão que não o fato de que Tiago constitui uma dificuldade retórica na luta contra os
católicos. Tiago como que dá poder de
fogo aos “inimigos”. Na batalha campal, não se trata apenas de afastar os
adversários do território a ser ou conquistado ou defendido: isso é importante
– tudo quanto der poder aos combatentes do exército rival deve ser igualmente
combatido, rechaçado, lançado ao fogo. Assim, fora os católicos!, e fora, com
eles, os textos que usam contra nós!
Anote-se:
o cânon protestante carrega consigo as marcas da batalha entre protestantes e
católicos, de modo que, à cisão entre católicos e protestantes, corresponde,
inclusive fisicamente, as marcas canônicas da “Bíblia” que nasce. E o padrão é:
o cânon corresponde a uma seleção de livros sagrados sob o critério de expurgar
dele tudo quanto dê poder específico ao adversário. No caso luterano, Tiago e os Deuterocanônicos.
Os cristãos do
primeiro e segundo séculos versus os
gnósticos
Aquela
que ficou conhecida como a Carta de Judas
tem uma característica muito curiosa – baseia toda a sua retórica de guerra
contra os “falsos profetas” que tem sob a mira de sua besta em livros que, não
ainda à época, certamente, mas, mais tarde, e hoje, passaram a ser tratados por
“livros apócrifos”. Como tamanha autoridade pode ser sustentada em “literatura
apócrifa”? Parece forçoso admitir que tudo se resolve quando se concebe que,
então, à época, não se tratava de literatura considerada apócrifa – muito pelo
contrário: tão alto grau de concentração de referências numa carta tão pequena
concede àquela literatura um estado bastante eminente e relevante. Sagrado?
Bem,
se Judas faz de sua carta uma imprecação a que os destinatários façam uma
guerra de defesa da fé – “uma vez por todas dada aos santos”, assevera-se –, a
literatura (agora apócrifa) a que Judas
faz referência serve, então, de “porrete”: é com ela que Judas bate com força – inutilmente? – na cabeça dos “falsos
profetas”.
A
importância que Judas dá a
literatura, agora apócrifa, que usa, é tão grande, que chega a citá-la, na
prática, literalmente. Judas 14-15 constitui citação de Enoque, palavra a palavra, ainda que, eventualmente, de memória. E
isso depois de ter feito referência a Enoque
no v. 6. E não fica em Enoque.
Emprega outras literaturas da tradição judaico-cristã da época. E dá a elas um
caráter eminentemente “sagrado” – no mínimo, de autoridade eclesiástica.
Estamos
diante de um momento significativo da história cristã. Apocalipse empregará a mesma literatura. Paulo a empregara – toda a
sua “demonologia”, sua “angelologia” e sua “topografia celeste” está baseada nessa
literatura. E, no entanto, ela será desprezada, aviltada e rejeitada. Não
tardará. Imediatamente após a Carta de
Judas, todo um enorme conjunto de literatura, até então sagrada e
fartamente empregada nas comunidades judaicas e cristãs será – como que da
noite para o dia – lançado fora.
Só
ela? Não. Deve-se apostar na relação entre a rejeição feroz a essa literatura e
a rejeição das doutrinas, liturgias e práticas “gnósticas”. O “gnosticismo”
começou já no primeiro século, mas atingiu seu apogeu no segundo século
cristão. O conflito entre “cristãos” (a rigor, também gnósticos, porque, ao fim
e ao cabo, cristianismo é gnosticismo, no sentido de constituir-se por meio da
transmissão catequética, conquanto não esotérica, mas pública, de sua gnose
soteriológica) e “gnósticos” foi não pouco violento – e, no seu transcurso,
homens e mulheres, bem como a literatura que lhes dava “poder” retórico, foram
rejeitados e interditados.
À
rejeição e expulsão das comunidades e dos indivíduos gnósticos do seio das
comunidades cristãs correspondeu a rejeição de farta literatura que comunidades
cristãs inteiras até então empregavam fartamente. Todavia, à medida que foi se
concentrando nessa literatura a força do argumento apologético e polêmico do
movimento gnóstico, também foi se desenvolvendo a percepção de que a manutenção
dessa literatura dentro das comunidades tanto dificultava o combate
anti-gnóstico quanto facilitava a resistência do “inimigo”.
Assim,
é possível dizer que a cisão entre cristãos não-gnósticos e cristãos-gnósticos,
doravante, apenas gnósticos corresponde à causa pela qual a literatura até
então sagrada dos cristianismos cristãos originários foi rejeitada, convertendo-se
em parte do conjunto que hoje se trata sob o termo negativo/pejorativo de
literatura apócrifa.
Um
“evento” irônico, todavia, pode ter sido a manutenção da Carta de Judas, porque, afinal, ela está claramente do lado da “fé”
e frontal e claramente contra a “gnose” inimiga da fé. No entanto, que
constrangimento!, ela se sustenta justamente por meio de referências
escandalosas à literatura que “acaba” de ser considerada herética – apócrifa.
Que fazer?
É
provável que Judas tenha sido totalmente re-escrita e, talvez, com intenções
locais de constituir uma substituição da carta original. É possível defender a
hipótese de que essa re-escrituração de Judas constitua o que hoje é o segundo
capítulo da segunda carta de Pedro (2 Pd 2). Com efeito, a leitura comparada de
ambos os textos evidencia, sem muita dificuldade, que se trata não apenas da
mesma narrativa, mas da mesma estrutura inclusive. Há poucas alterações de
fato. Há, sim, concentrações temáticas. Mas, acima de tudo, o que salta aos
olhos, como fagulha de esmeril, é a radical supressão, inegociável, de qualquer
laivo daquela literatura, a essa altura, por hipótese, rejeitada. Os anjos
permanecem – afinal esse é o tema da carta. Mas somem todas as explicitações de
que o que se sabia sobre eles, então, encontrava-se naquela literatura que,
agora, recende a enxofre... Fora com os gnósticos!, e fora toda a sua
literatura herética!
Os judeus versus a comunidade joanina
Aquela
que, para meu “gosto pessoal”, trata-se da “mãe de todas as batalhas”,
travou-se entre judeus que aderiram à crença em Jesus como messias e judeus que permaneceram fiéis à tradição sinagogal.
Parece que o “caso típico” encontra-se representado pela “comunidade joanina”,
responsável pela redação do Evangelho de
João.
A
“comunidade joanina” parece ter sido constituída por judeus expulsos de
sinagogas. Isso deve ter-se dado pelos fins do primeiro século, o que situa o Evangelho de João um pouco mais à frente
– no extremo final desse século ou nos inícios do segundo.
Por
meio do Prólogo de João, pode-se considerar que a polêmica
dessa comunidade se dava em duas “frentes” – de um lado, a comunidade dos
discípulos de João batista (considerando sua presença aí mais do que “mero” eco
de sua presença no evento jesuânico original) e, de outro lado, os judeus
propriamente ditos.
Os
judeus não aceitavam Jesus como messias. Nem Jesus nem João batista, é verdade.
Já os discípulos de João batista, por isso mesmo, tinham-no como messias ou
algo assim. Já a comunidade joanina, naturalmente, aderira à fé no messias
Jesus.
Diante
dos judeus, a comunidade joanina devia defender-se da tradição – basicamente,
mas não só ela, a Torá. Diante dos discípulos de João batista, a comunidade,
agora, tinha de defender-se de duas acusações: a) Jesus era mais novo do que
João batista, de modo que, para os padrões orientais, João era maior do que
Jesus; e, além disso, b) João batizara Jesus. De todos os lados, a fé messiânica
da comunidade era negada.
Pior:
a própria tradição evangélica sabia que Jesus era, mesmo, mais novo do que João
batista, e que, além disso, sim, é verdade, Jesus fora batizado por ele. As
coisas não estavam fáceis. Como sair da enrascada, já que os “fatos” davam
razão aos “adversários” polêmicos?
A
saída que a comunidade joanina inventou é das mais extraordinárias da história
da retórica humana – se me permitem o exagero retórico. Eis o raciocínio,
conforme me parece plausível e histórico.
Se
João batista, sendo mais velho, era mais importante do que Jesus, de modo que
Jesus não podia ser messias, mas, sim, João, então, se essa ordem cronológica
fosse invertida, as coisas não apenas ficavam boas para a comunidade joanina,
mas ficavam terríveis para os adversários batistas. Era necessário fazer de
Jesus alguém “mais velho” do que João batista, porque, assim, mais velho, Jesus
seria maior...
Ter
nascido de virgem não adiantava muito. Podia ter nascido de setenta virgens
que, ainda assim, seria mais novo do que João, logo, “menor”. Jesus tinha que ser mais velho...
Pois
bem, a tradição judaica da Sinagoga e do Templo conhecia uma figura muito
importante – Sabedoria. Nos termos
dessa tradição – e, eis o que é de suma importância: ela está totalmente nos
deuterocanônicos! – a Sabedoria
constituía, a rigor, a “Palavra de Deus”, que saiu da boca de Yahweh, que armou
a sua tenda (sim, a mesma fórmula do Prólogo
de João) e oficiava no Templo – ou
seja, a Palavra “encarnada” de Yahweh já era conhecida havia décadas, talvez,
séculos, entre e pelos judeus – ela era a Torá.
O
que a comunidade fará constitui um gesto de absurda simplicidade, ao mesmo
tempo em que carregada de um potencial criativo que marcaria “para sempre” a
tradição cristã: a comunidade joanina apropriou-se do tema do “Palavra de Deus
‘encarnada’” (que era a Torá) e a aplicou a Jesus, que, a partir de então, na
retórica e na teologia cristãs, passaria a ser o “Verbo – isto é, a Palavra –
encarnada”. O que a Torá era é,
agora, transferido para Jesus, o messias – nesse caso, agora, mais velho do que João batista...
Com
um só movimento, de um lado, a comunidade defende-se da crítica dos antigos
irmãos de fé e tradição: “Moisés trouxe apenas a Lei, a Torá, mas Jesus, não –
com Jesus, chegam a graça e a verdade”, assumindo-se, naturalmente, a tese
joanina de que a Torá não é a Palavra de Deus “encarnada”, e, sim, Jesus, que
“armou a sua tenda entre nós” e de quem “vimos a sua glória”. Jesus é a verdadeira luz...
De
outro lado, na frente batista, assumindo o argumento de que o mais velho é
maior, e contra-argumentando, agora, que, sendo a “Palavra de Deus”, encarnada,
é verdade, Jesus é, todavia, na verdade muito mais velho do que João batista, a
comunidade joanina considera poder calar a boca dos adversários batistas, pondo
na boca de seu “messias” a declaração de capitulação: “este é aquele que veio
após mim, mas é maior do que eu, porque existia antes de mim” (por duas vezes
empregada em João 1!).
Em
termos retóricos – fantástico argumento! Retornemos, todavia, ao tema que nos
interessa – a relação entre expulsão de gente e interdição dos textos dessa
gente. Ora, uma vez que a comunidade joanina serviu-se dos (agora assim
chamados) deuterocanônicos (nesse específico caso da “Cristologia alta”, Sabedoria, Eclesiástico e Baruque),
quando os judeus expulsaram-na da sinagoga, interditaram, ao mesmo tempo, os
livros de que se servia para, assim, pôr Jesus no lugar da Torá como “Palavra
de Deus encarnada”.
Parece
plausível admitir que a relação estreita entre Sabedoria, Eclesiástico e
Baruque, de um lado, e a “Cristologia
alta joanina”, de outro, levou o judaísmo sinagogal e canônico a interditar
tais livros no conjunto dos textos sagrados, o cânon judaico, determinado
justamente nesse período. Quanto aos cristãos, permaneceram utilizando-se dessa
literatura – na prática, a LXX, e, logo, a Vulgata.
Para
um protestante e/ou evangélico, o Logos
de Jo 1,1 parece apontar para a Grécia platônica... Todavia, estou convencido
de que isso se deve tão somente ao detalhe histórico de que Lutero tenha interditado
acesso a esses livros no conjunto de seu
cânon, cânon esse que protestantes e/ou evangélicos carregam.
No
entanto, quer-me parecer que não é bem exatamente da Grécia que vem esse Logos, isto é, essa “Palavra” – parece
que ela vinha de bastante próximo de judeus e judeus-cristãos, e tão próximo
que, expulsar os cristãos da sinagoga tinha por movimento paralelo e necessário
a recusa de seus livros no cânon
judaico – porque apenas a Torá permanecia firme, aí, como Palavra de Deus. Fora
os cristãos!, e fora com esses livros malditos!
Judeus versus judeus
O
“caso Lutero”, a crise gnóstica e o conflito judeus versus cristãos não inauguram o processo de, expulsando-se gente,
interditarem-se-lhes os rolos sagrados. Anteriormente a tudo isso, e ainda que
numa dimensão relativamente diferente, dentro do próprio judaísmo, o fenômeno
já havia sido percebido.
Os
samaritanos constituem uma porção da sociedade “judaica” com características
muito especiais. Eram considerados, no fundo, não-judeus, pelo fato de a
tradição lhes atribuir, por origem, a contra-deportação assíria, da época da
destruição de Samaria e Israel. Os Assírios teriam, depois de deportado os
judeus, instalado na terra deles um amontoado de povos. Na prática, os
samaritanos eram considerados, assim, o resultado “impuro” dessa mistura de
gente de fora, de gente não judia.
O
conflito já começa a intensificar-se no período da Reconstrução de Jerusalém –
acirram-se as desconfianças. Parece que, todavia, até aí, havia algum grau de
familiaridade. Penso no fato de que samaritanos e judeus tinham em comum o
“Pentateuco” como conjunto sagrado.
No
entanto, o “Pentateuco samaritano” tem consideráveis diferenças de conteúdo em
relação ao “Pentateuco judaico”, o que pode refletir, por hipótese, vários
fenômenos históricos, que se poderiam resumir no fato de que o ponto comum, na
origem, é a aceitação desse conjunto como sagrado, sendo que, a partir daí, as
histórias conflituosas dos dois grupos determinariam uma história de
transmissão desse protocânon diferente dentro de cada comunidade.
Se
não levarmos em conta a relação entre samaritanos e judeus, mas, apenas, os
judeus, ainda assim podemos observar divergências entre grupos
político-religiosos que se caracterizam, também,
pela posse de grupos distintos de rolos.
Por
exemplo – fariseus e saduceus. Os saduceus permanecem fiéis à Torá – o que
talvez se explique por sua relação muito próxima com o Templo. Já os fariseus,
estendem o conjunto do rolo para os Profetas
e os Escritos, que, ao que parece,
marcam a sinagoga. Da mesma forma como a relação entre samaritanos e judeus, a
uma aceitação original comum de um grupo de rolos, segue-se, por força das
relações conflituosas e da história específica das comunidades, uma cada vez
maior diferenciação entre os rolos catalogados como sagrados – isso também
entre fariseus e saduceus.
Deve-se,
todavia, perceber uma diferença não tão sutil entre essa fase e as fases
seguintes, comentadas anteriormente. Aqui, estamos no período da construção da
identidade judaica, com soluções de “fronteira” e determinação de identidade de
grupos que, no entanto, permanecem no marco estrutural do Judaísmo.
A
fase seguinte, inaugurada pelo conflito entre judeus e “cristãos” – no fundo,
judeus “intoleráveis” – marcará uma nova fase, mais radical porque doravante
marcada pela força de um “cânon” formal e institucional. À formalidade da
“cânon” corresponderá a formalidade das “fronteiras” marcadas: nem eles nem os
livros deles são bem-vindos aqui: são, ambos, eles e os livros deles, anátema...
Cânon e
ratificação de identidade
Bem,
trata-se de uma aproximação muito breve e, certamente, bastante superficial e
esquemática, sob o recorte perigoso da longa duração histórica. Todavia, penso
que podemos arriscar uma conclusão parcial: a questão canônica circunscreve-se
à questão da identidade, da marcação da identidade.
O
grupo “canônico” reconhece-se à luz da diferença que estabelece, ele mesmo,
entre si mesmo e o “outro” (os “outros”). Nós não somos isso. Nós não somos assim.
Ratificada a auto-identidade à luz da distância do outro, as bases materiais da
identidade do outro são, do mesmo modo, recusadas – os rolos que eles usam para construir sua identidade,
e, assim, pôr em descoberto a “nossa” identidade devem ser proibidos,
interditados, expulsos mesmo.
Não
vem ao caso, aqui, se a identidade do grupo está, realmente, construída à base
desse cânon – ora, uma vez que o processo hermenêutico padrão da época
constitui-se do aproveitamento hiperbólico da polissemia dos textos – alegoria,
midrashe –, resulta difícil insistir numa relação direta entre esses rolos e a
identidade tomada como fundamentada neles.
Mas
isso não importa: o que está em jogo aí é a “enunciação” retórica do grupo, e o
fato de que essa enunciação se dá em face da auto-identidade que constrói em
conflito com os deuteragonistas – os “adversários” – que tem. E mais: uma vez
que, tanto quanto o grupo em questão constrói sua auto-identidade com base
(alegórico-midráshica e tradicional) em seus rolos “canônicos”, também o “outro
grupo” constrói contra “nós” sua identidade com base em rolos que eles usam – armas contra “nós”. Assim,
ao mesmo tempo em que recuso os outros, e os expulso, recuso seus livros, e os
interdito. Os outros e os livros deles são uma coisa só – o que nós não
somos...
É
curioso como, no fundo, não se trata do que as palavras dizem, mas do que
fazemos elas dizerem, o que, no fundo, depende do jogo que estamos jogando, do
momento em que estamos jogando, dos adversários desse jogo. Nesses nossos dias,
séculos já se foram, vivemos (n)um burburinho de metáforas – na Europa também,
mas não só lá! – e de “produções de sentido”. Se, antes, naqueles casos, a
construção alegórica de sentido era feita como que sendo esse o caminho “natural”
do sentido, hoje, sabe-se que a alegoria, qualquer que seja sua materialização,
constitui um desvio do sentido original – que, nesses ambientes, se quer ora
negar, ora des(menos)prezar.
Além
disso, a despeito de ser o mesmo fenômeno de releitura, de alegoria, de, agora,
“metáfora” e “produção de sentido”, o que quer dizer que estamos diante dos
mesmos mecanismos de construção – e manutenção! – de “identidade”, talvez se
deva admitir que, no entanto, ao contrário de como as coisas se deram e davam
antigamente, não se tem procurado recorrer a isso, hoje, apenas para marcar a auto-identidade contra os outros – pelo contrário: inventou-se um modo de, por via
da elasticidade plástica das palavras, esticá-las até o limite de fabricar
modelos de identidade tão fluida que, aí dentro, dessa “Palavra” que, antes,
separava, agora junte aquela “mistura de povos”.
Estamos,
ainda, diante do “império” dos rolos. Os discursos vão-se dissolvendo, como
preço de receber “o outro” dentro da casa paroquial comum. A Inclusão vai
sobreponde-se, lentamente, à Exclusão. Mas, se dermos dois passos atrás, e
olharmos esse fenômeno milenar como que “de longe”, observaremos, sem surpresa,
que ainda estamos naquela mesma tarde e manhã, ainda estamos vivendo os dias de
construírem-se identidades por meio de antigos papéis embolorados...
Sim
as palavras são novas, a intenção política é nova – é inclusiva: mas, o que
isso significará?, são os mesmos rolos de samaritanos, fariseus, saduceus,
judeus, cristãos primitivos, gnósticos, luteranos e católicos a massa de
modelar que usamos para inventar quem somos e como devemos aceitar os outros.
Não
nos bastam as carnes. A celulose ainda dá as cartas...
[1]
Doutor em Teologia (Bíblica) pela PUC-Rio. Professor da Faculdade Unidade de
Vitória. Marido de Bel. Pai de Israel e Jordão.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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