terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

(2012/153) Deuteronomistas e trágicos - estamos diante de "partidos" realmente distintos do "clero"?



1. Vou botar a mão numa cumbuca, talvez, mexer com um vespeiro, mas a conversa de duas horas e meia com Jimmy, ele da França, eu em Vitória, no Rio (ligação a preço zero da França para cá - se fosse eu a ligar, lá se ia uma fortuna) reverbera em minha cabeça... Jimmy lidará com os "trágicos", indiretamente, os trágicos gregos, porque está a rolar ao chão num octógono com Dostoievski, a quem classificará como um trágico.

2. Bem, há uma discussão interminável sobre os deuteronomistas da Bíblia Hebraica. Teriam sido os responsáveis por grande parte dos textos entre Josué e Reis, bem como pelo Deuteronômio. São, amiúde, distinguidos dos sacerdotes.

3. Eu fico com muita dúvida sobre isso. Se você lê os deuteronomistas, tudo ali aponta para um e um único lugar - o Templo de Jerusalém. Há, aqui e ali, vestígios de alguma concessão ou memórias de alguma exceção, mas, grosso modo, o centro nervoso, o coração do deuteronomista está não apenas em Jerusalém, mas no umbigo de Jerusalém - o templo.

4. Mas, insiste-se, não são sacerdotais... Até quanto a isso tenho severas dúvidas. Mas vá lá: que não sejam precisamente sacerdotes: mas a serviço de quem está um grupo social que em tudo concentra todo o poder no Templo de Jerusalém? Bem, das duas uma - ou são sacerdotes ou são os chefes dos sacerdotes, nesse caso, autoridades persas.

5. Não é possível imaginá-los como profetas. Seria um crime de lesa tradição. Não é possível imaginá-los como "leigos" comerciantes, porque isso não explicaria por que a concentração no templo de Jerusalém. Minha hipótese é, portanto, a de que os deuteronomistas estão de algum modo identificados aos interesses, à ideologia, ao universo, sacerdotal, não constituindo, em sentido amplo, um partido não-sacerdotal, muito menos uma alternativa ao imaginário sacerdotal.

6. Pois bem, aí entram os trágicos gregos. Podemos considerar que os trágicos não estejam intimamente ligados ao clero grego?

7. Bem, pensemos as linhas gerais de uma tragédia: os deuses - os deuses! - anunciam um destino xis. Um herói entrega-se à tarefa de fugir a esse destino. O desenrolar da narrativa, então, descreve um processo de tentativa do herói de escapar ao destino divinamente determinado. Mas o final da narrativa é invariável - o herói acaba caindo exatamente no poço do qual tentara escapar. Os deuses decidem - nenhum herói, nenhum homem pode fugir à determinação divina...

8. Bem, a quem esse discurso atende? Aos deuses. Não à "democracia" ateniense - pelo contrário, e talvez se possam pensar as tragédias como uma crítica à democracia. Bem, se são os deuses os empoderados pela tragédia, como pensar um trágico como ligado a um partido independente do clero? Como afastar a mão do trágico da mão do clero?, pôr em relicários distintos o coração de ambos?

9. Se na narrativa tanto os homens quanto os deuses fossem obliterados em sua presunção... Vejam, por exemplo, o caso de Ísis sem Véu, de Madame Blavatsky. Dois volumes de crítica à teologia e dois volumes de crítica à cíência. Teologia de um lado, ciência do outro e Madame na outra ponta de um triângulo assim formado.

10. Mas os trágicos? Numa ponta, digamos, os filósofos "modernos" de Atenas. Na outra, o clero - que vitimará Sócrates... E na outra, os trágicos. Mas como assim, na outra, se o que os trágicos defendem é rigorosamente a mesma coisa que o clero: os deuses são o poder mais alto, do qual os homens não podem se subtrair, por mais que desejem e tentem... Em termos de análise do discurso, não há como distinguir a retórica clerical da trágica...

11. Insisto: seria preciso que, na tragédia, homens e deuses fossem zombados, diminuídos a pó, para que pudéssemos pôr os trágicos num lugar distinto de onde se podem pôr os sacerdotes gregos - talvez aqueles mesmos que talvez tenham feito o derradeiro sacrifício de Sócrates, o galo, a Asclépio...

12. Mas não. Nas tragédias, os homens perdem - os deuses ganham. Mesmo um Prometeu, que rouba o fogo dos deuses, mesmo ele, perderá. Uma vez que se trata de uma etiologia para explicar como o poder foi roubado aos deuses - e foi -, o herói é relativamente bem-sucedido: doravante, o fogo está na mão dos homens. Todavia, a que preço? Pela eternidade, Prometeu terá seu fígado comido pela águia.

13. Não sei, tem algo de errado, de um lado, em se esforçar por separarem deuteronomistas e sacerdotes, e, de outro, trágicos e sacerdotes. Estaria por trás dessa operação "retórica" uma espécie de higienização foçada de deuteronomistas e trágicos?

14. Talvez opere esse mesmo princípio na discussão sobre o monoteísmo judeu - a despeito das evidências arqueológicas, ainda se insiste em trabalhar com uma origem "profética" (século IX, VIII) para o pathos monoteísta. Se o monoteísmo é do século V, todavia, tratar-se-ia, então, de um construto sacerdotal. Daí, eu trabalho com essa hipótese, o esforço retórico para datar o monoteísmo mais tarde, e torná-lo algo "tão bom" quanto os profetas... éticos!

15. Talvez se trate da mesma coisa: salvar os trágicos!



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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