quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

(2012/123) Dos deuses como "fim" e não como "meio" - mas, como assim?


1. Num dos comentários do facebook aos textos de Peroratio que lá posto, comentou-se que a questão se resumiria ao fato de as pessoas conceberem os deuses como "meio" e não como "fim" - Deus é tido por elas sempre como solução para algum problema: dor de cabeça, fome, perigo de assalto, doenças, desemprego, qualquer coisa que ameace a condição mínima de vida.

2. Nos termos do argumento, então, o adequado seria Deus não ser visto pelas pessoas como um "meio" para esse cuidado necessário, mas um "fim". Isso deve querer dizer que Deus deveria ser buscado, adorado e servido independentemente da "utilidade" que ele tem ou teria em razão de seu poder de cuidado. Culto como fim... Interessante.

3. Muito idealista, eu diria. 

4. Historicamente, os deuses foram elaborados como instrumentos de cuidado e serviço. Talvez, primeiro se tenha tomado consciência dos "deuses" em experiências naturais e psicológicas de medo e terror que, com o passar do tempo, converteram-se em abstrações do poder divino que, finalmente, converteu-se no inverso da relação anterior: desde o medo do poder terrível que se manifestara, chega-se à instrumentalização desse poder terrível em benefício próprio.

5. Há poucas chances de a origens da concepção que os homens têm dos deuses não tenha se dado em torno da relação de cuidado, de instrumentalização, de meio. De fim? Duvido. 

6. No fundo, os deuses servem porque servem para alguma coisa. Não servissem para nada, já teriam desaparecido. Somente uma abstração muito descolada da realidade, da vida concreta, pode postular uma relação com os deuses que passe não pela sua utilidade, mas pelo seu "ser" adorável...

7. Ora, recentemente, pelo menos dois movimentos tendem a superar a instrumentalidade de Deus - e, em ambos os casos, Deus, aí, tende a ir desaparecendo... 

8. Num caso, o deísmo inglês. A meu ver, ele corresponde às transformações políticas da Inglaterra - um "reino" onde a rainha e o rei são retóricos, de enfeite, estão lá porque é a tradição, mas não servem para muita coisa, salvo passear de carruagem dourada, morar em palácios de luxo, servir de símbolo, que sentido faz uma teologia teísta? Nenhum. Nesse ponto, muito coerente o deísmo...

9. Assim, na terra como céu, Deus (e rei) até há, mas não fazem mais muita coisa. Deus foi cuidar da vida ou, quem sabe, postou-se a admirar sua criação, enquanto escuta o tic-tac do relógio... Esse não é mais um Deus útil. Mais um pouco e ele desaparece...

10. Na outra ponta, teologias como a do processo e aquelas mais catársicas, segundo as quais Deus não é todo-poderoso, nem tem poder de cuidar de todos ou sempre. Deus só pode oferecer seu amor, mas não garantias de proteção.

11. Ora, a gritaria contra essa teologia - veja-se o caso de Gondin! - é enorme. E por quê? Ela parece adaptar-se muito mais à realidade do planeta do que qualquer outra teologia, já que há bilhões de pessoas em dor, sofrimento e miséria...

12. Mas a gritaria é por conta do fato de que um Deus que não é um super-Deus, mas um "deusinho" bem do mixuruca (se o critério é a Força), bem, esse Deus serve para quê? Ou será jogado fora, ou será recusada a sua descrição nesses termos.

13. Na prática, os homens querem um Deus que os ajude a viver - ao menos é nisso que acreditam. Uma teologia em que Deus é pouco útil é bom para um teólogo europeu, assentado sobre a riqueza das nações, vivendo de rendas e pago pela Igreja-Estado. Para o comum dos homens, bem, ou Deus diz a que veio, ou dê passagem ao próximo da lista...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. observem-se as religiões em que o "pecado" assume a forma de narrativas operadas no nível humano - carma e darma, por exemplo. Dois casos: Budismo e Espiritismo. Lá, em algumas "escolas" sequer há deuses. No Espiritismo, Deus mesmo é uma peça retórica, porque todo o processo de evolução independe dele, em última análise. Ou seja: onde os deuses são descartáveis, acabam sendo descartados, ainda que uma figura retórica lá presida à narrativa-mito de sua doutrina...

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