1. Eu compreendo a Apologia e os apologetas. Não gosto da Apologia, todavia. Ela pressupõe a seguinte plataforma: isso aqui é uma pedra - vou usar todos os argumentos disponíveis para provar que é uma pedra e, se ainda assim, não convencer o mundo de que isso é uma pedra, ainda assim é uma pedra; e, se em algum momento eu for convencido de que não é uma pedra, ainda assim será uma pedra. Porque é uma pedra. E é uma pedra porque creio que é uma pedra.
2. Claro, fiz uma caricatura. Mas, se eu diminuir a ironia, o quadro que restará não será muito diferente. Eu prefiro aquela atitude interna que se resume em perguntar-se, de quinze em quinze minutos, se isso que estamos pensando, lendo, falando, está, afinal, certo mesmo. A isso se chama crítica. Não gosto de Apologia. Gosto de Crítica.
3. Pois bem: hoje de manhã fui perguntado sobre a graça no Antigo Testamento.
4. A resposta me saiu pela boca sem que eu a produzisse... Minto, claro, que era eu a produzindo, mas, se eu não fosse perguntado, ela não saía. A pergunta me arrancou a elaboração teórica, que resumo.
5. Bem, o que é a graça no Novo Testamento? O que quer que se diga dela, passa, necessariamente - e, se eu estiver errado, me corrijam - pelo "Cordeiro". Graça é só um nome para se dizer que o que quer que se devesse cobrar do homem, cobrou-se de Jesus. É a teologia do sacrifício substitutivo.
6. Não se trata de graça gratuita em nenhuma circunstância. "Sei que foi pago um alto preço", cantam-se aos milhares - ontem, melhor, hoje, cada vez com menos elegância e qualidade: novos tempos... A graça é só o rótulo do resultado de uma conta, apresentada, todavia, na perspectiva do "réu". O sujeito tem que morrer. Alguém morre no lugar dele. O sujeito que tinha que morrer não precisa morrer mais, porque foi agraciado: graça.
7. Pois bem: temos, de fato, alguma novidade aí? Naturalmente que, se você considera que alguns judeus aplicaram essa estrutura - sacrificial, sacerdotal, templária - a Jesus (o que, naquele momento, em face da tradição judaica, constitui heresia!), isso tem de ser tomado em conta com uma extraordinária novidade. Mas, atenção! Só o fato de a estrutura narrativa ser aplicada a Jesus - mas a estrutura narrativa em si, não: ela é tão velha quanto 500 anos antes de ter sido aplicada ao "messias".
8. Desde pelo menos o século V (não estou certo de que tenha ocorrido logo após a reconstrução do Templo, em 515), os sacerdotes (já o sumosacerdote Josué, de Zacarias?) inventaram o sacrifício substitutivo, ou, ao menos, se não o inventaram (mas ele não existia em Israel e Judá antes disso!), o aplicaram aos sacrifícios do Templo.
9. Todo judeu deveria sacrificar, sob pena de sofrer, de Yahweh, os castigos por conta de seu pecado. Dito de outro modo, todo judeu é pecador e tem de morrer (Paulo não conhece outra teologia, senão essa, e é essa que ele aplica à cruz). Como Yahweh é "bom", oferece uma alternativa: o judeu que matar sacrificialmente - no Templo! - um animal, um cabrito (como o fez Abraão!), estará provisoriamente perdoado, salvo. Graça.
10. Graça, eu disse? Sim, porque o castigo que, nos termos da teologia sacerdotal, deveria cair sobre a cabeça do judeu, Yahweh aceita aplicar ao animal, que morre no lugar do judeu. Não houve perdão nenhum, mas o judeu foi "agraciado" com a transferência - provisória - de seu pecado para o animal. Graça.
11. O mesmo vale para a teologia da cruz. Perdão, perdão, não há. Há a transferência do castigo do homem para Jesus, que morre. Lá, morre o cabrito. Cá, o Cordeiro. Graça. Lá e cá - ainda que se deveria, sempre, escrever "graça".
12. Graça lá, graça cá, com uma diferença - aquela que Hebreus ressalta: lá, muitas vezes, todo ano, cá, uma vez e para sempre.
13. Bem, com isso, os judeus e os homens estariam livres de ir, de novo, ao templo. É a lógica. Se estou definitivamente perdoado... E tanto que Hebreus logo faz saber que há muitos deixando a congregação... Mas sacerdotes não querem que se deixe a beira do altar, sejam aqueles que matavam cabritos, sejam esses que interpretam Jesus como o Cordeiro: agraciado, ele tem de agarrar-se aos chifres do altar e não arredar pé...
14. Daí que o clero cristão acabou tendo de criar rotinas mais rígidas de manutenção do fiel à roda do altar do que o sacerdote judeu: porque o sacerdote judeu, a ele bastava a teologia - todo ano, meu filho, vem cá sacrificar, se não... Já o cristão, ele mesmo ensina que o sacrifício foi único e irrepetível, válido pra sempre. Logo, que precisa, de novo, lá fazer o beneficiado? Nada. E não é por outra razão que se criaram as estratégias clericais - para fazer com que quem não precisava mais ficar, ficasse...
15. Não é nada apologético meu texto - é? Mas eu falei que gostava da crítica. Resta ver se estou certo...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Dr. Osvaldo, a cada vez que o leio, sinto-me descontruído. Mas o que traz alento em suas leituras, é que não ficamos órfãos de tudo. Somos, outra vez, contruídos. O desespero abate justamente aí. Após uma nova construção, outra desconstrução e outra e outra e outra. Talvez seja esse mesmo o papel da crítica moderna.
Todavia, sinto-me privilegiado por poder crescer através de sua pena. Bem quisesse iniciar a caminhada como um louco escritor depois de tê-lo conhecido, mas o caminho passado ainda me é "necessário".
Permita-me um desafio (com certo ar de apelo): Temos tantos comentários apologéticos ralos e confusos que constróem tão somente um modelo - mesmo modelo - sobre o cristianismo, que a base tem se tornado cada vez mais frágil. Bíblias são lançadas com rodapé contendo o sermão de domingo. Que tal documentar, livro por livro do A.T., suas considerações em análise histórico crítica? Creio que seria uma colaboração ímpar tanto para a academia como para um dilatar cerebral no seio da igreja.
Pense com carinho a respeito. Sei que o ourviroevento trabalha com muito desse material, mas uma publicação seria o cão chupando manga, como falamos em Porciúncula.
Respeitosamente,
seu talmidim.
Olá, Lellis, meu amigo - e o livro, sai quando? Bem, meu sonho é mais do que isso, mais do que um comentário crítico - é uma tradução independente. Talvez eu o faça, quando me aposentar. Minha inserção na CAPES se dá em Ciências das Religiões, com temática e currículo não diretamente relacionado a isso. Se, quem sabe, à frente eu puder transformar isso em projeto profissional ligado à CAPES, tenha certeza de que farei. Caso contrário, quando estiver na fila do INSS, enquanto espero atendimento.
Seja como for, acho que a modernidade é isso aí: desconstruir-se e reconstruir-se. Foi o que me ensinaram meus malditos autores de cabeceira.
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