sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

(2012/039) Ágora, um filme sobre Hypatia, a filósofa-mártir



1. Assisti, agora há pouco, as duas horas de Ágora, uma espécie de breve biografia de Hypatia.

2. Hypatia foi uma filósofa, residente na Alexandria romana (séculos IV e V) e logo, com todas as implicações históricas, a Alexandria cristã. Hypatia manteve-se "pagã" - termo, logo se vê, pejorativo e deplorável. Nos termos da narrativa, açulada pelo Bispo Cirilo, o grupo de "monges" cristãos parabolani a matam, apedrejada, depois arrastam seu corpo pela rua e a queimam, publicamente. Tudo, claro, em nome da Bíblia e de Deus. Emociono-me, mas não me surpreendo. Nem um pouco. Não mais.

3. Não vou falar do filme. Quero reportar-me a uma cena. Sempre nos termos do filme, Cirilo, o crápula - crápula, por minha conta, claro, que Cirilo foi tão digníssimo Bispo da Igreja que, depois, virou Doutor dela - e santo, prova de que, entre os santos, também há canalhas.

4. Perco-me em reações emotivas. Retorno à narrativa. Cirilo lê a passagem de Paulo a Timóteo em que prescreve a submissão da mulher aos homens e seu silêncio, principalmente a proibição de que ensine. Talvez não tenha sido Paulo a ter escrito a passagem e o livro, mas isso faz tanta diferença quanto você beber água em copo ou caneca. Principalmente se na água boiam, cá e lá, coliformes fecais.

5. É uma armadilha que Cirilo prepara. Diante dele está Orestes, antigo aluno de Hypatia e, agora, prefeito de Alexandria, convertido ao Cristianismo, mas amigo - no fundo, apaixonado - de Hypatia e seu confidente. Depois de ler a passagem bíblica, Cirilo acusa Hypatia de ateísmo e bruxaria, e, por tabela, acusa Orestes de acobertá-la.

6. Exige que Orestes se ajoelhe diante da Bíblia - Orestes está numa situação complicada, politicamente. Se se ajoelha, trai a amada/amiga - se não se ajoelha, corre o risco de ter contra si a fúria da população cristã, essa massa de manobra milenar. Não se ajoelha. Vai pagar caro.

7. Saindo da audiência, é apedrejado pelos parabolani, cujo líder fanático, por isso, é morto, razão que será usada por Cirilo, nos termos da película, para inflamar contra Hypatia a revanche dos monges de Deus. Em sua residência, Orestes é visitado pelo Bispo de Cynere, que estivera presente na audiência e que fora aluno de Hypatia, junto com Orestes. O agora Bispo promete ajuda contra Cirilo, o crápula (perdoe-me, ó, Deus, a blasfêmia!), com uma condição: que Orestes pronuncie-se verdadeiro cristão.

8. Aqui está o momento nervoso do filme. A cena é forte. Orestes argumenta que, caso se ajoelhasse, trairia Hypatia. Não podia fazê-lo. E diz mais - diz que Cirilo manipula a Bíblia para controle da população. E, ah, um soco no estômago das táticas de dourar a pílula, de acomodar água e óleo... O agora Bispo diz-lhe, com todas as letras, que Cirilo lê o que está escrito... Que é a própria Bíblia quem diz o que Cirilo leu. Aos pés do Bispo se ajoelha um Orestes mortificado. Morta, mesmo, será Hypatia, daqui a pouco - e, dirá esse neo-converso, Orestes, sem que o prefeito nada possa fazer...

9. E é verdade. Você pode achar Cirilo um canalha - eu acho! Você pode achar que Cirilo é um grandissíssimo crápula - e eu acho! Cirilo até armou uma armadilha - e boa, vamos concordar! As hostes dos corvos são especialistas nisso! Mas, cá entre nós - ele leu ou não rigorosamente o que está escrito? Leu. Ponto. A Bíblia proibe que mulher ensine. Hypatia ensina? Ensina. Não pode. Ou pode? Para mim, pode - mas não para fanáticos: quando isso interessa ao fanatismo...

10. E aqui eu quero cutucar meus amigos teólogos que costumam fazer a Bíblia acomodar-se a uma ética que não é a dela: não há como abraçar uma ética humanista e tentar usar a Bíblia para justificá-la. A ética bíblica é pré-moderna, pré-humanista. Não há como condenar a calhordice de Cirilo, crápula, e, ao mesmo tempo, acariciar a passagem bíblica. Ela, a passagem, é tão má quanto ele: ambos, imprestáveis. Imprestáveis, não: perniciosos!

11. Eu não posso pôr-me ao lado do que a Bíblia condena e, ao mesmo tempo, tentar salvá-la. Não dá. Para pôr-me ao lado do que a Bíblia condena, devo condená-la igualmente. No campo das relações sociais da mulher, há inúmeras passagens na Bíblia que são ultrajantes, perversas, más, porque escritas por homens sem nenhuma preocupação quanto à dignidade da mulher, passagens que espelham uma sociedade machista, quiriarcal e má - o que faz dessas passagens passagens más e condenáveis, tanto quanto seus escritores o são.

12. Um exegeta não tem dificuldades com isso. Eu não tenho. Se uma passagem aprova ações que, à ética humanista, são condenáveis, às favas tal passagem. Se uma passagem recomenda ações que, à ética humanista, são boas, louvada seja a passagem. O critério não pode, jamais, ser a Bíblia - e, de fato, nunca o é (não conheço um único ser humano que tenha feito, de fato, da Bíblia, seu critério - e nenhum dos que me lêem agora o fizeram em um único dias de suas vidas, não importa quem seja). É sempre de acordo com nossos interesses que lemos a Bíblia e selecionamos o que é válido e o que não é. Para mim, exegeta, para quem a Bíblia é um conjuntos não-unitário e não-uniforme de proposições, nenhum problema. Há que se lê-la com a ética na mão - e não o contrário.

13. Uma coisa está clara para mim: há textos nocivos nesse livro, textos ruins, maus, que precisam ser lidos e enfrentados com a ética moderna, com os conceitos de fraternidade, irmandade, liberdade, igualdade. Quando os valores profundamente humanos deixam de controlar a leitura, ela e os leitores tornam-se vítimas de toda sorte de perversão, ainda que se façam de santos e ministros do Deus vivo.

14. Hypatia morreu. Cirilo é um crápula e canalha e calhorda. A Bíblia, ali, em Timóteo, diz que as mulheres não devem ensinar e devem submeter-se a seus maridos. Eis aí uma história que escondemos debaixo do tapete: nossas igrejas estão cheias de mulheres que não apenas falam, mas ensinam. Isso fizemos. Ponto pra nós. Mas não temos coragem - e isso é um erro mortal! - de dizer, com todas as letras que, ali, onde está escrito que mulheres devem submeter-se a homens e não podem ensinar é a boca quiriarcal, patriarcal e andriarcal que fala.

15. E, cá entre nós, onde mais não é essa boca a falar, ali, nesse livro de mil anos?


Hypatia, de Masolino (1428)




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Jimmy Sudario disse...

Osvaldo, seu email ouviroevento està funcionando? Jimmy

Peroratio disse...

Não, meu amigo, há duas semanas que estou a pé. Deu problema no outlook e não consigo abrir. Na segunda, pedirei ajuda ao funcionário de informática da Unida pra me ajudar, que perdi, espero que circunstancialmente, toda minha CP, além de não conseguir nem receber nem mandar e-mail. Acho que foi problema no meu drive C, não sei. Se urgente, mande-me e-mail para osvaldo@faculdadeunida.com.br que abro na segunda, na máquina da faculdade. Volto a trabalhar na segunda. Mas acho que vai me cobrar, né?, pela tese e pelo artigo...

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