terça-feira, 26 de julho de 2011

(2011/446) O cristão sofre com a democracia, conquanto tenha sido um dos seus formuladores modernos



1. Tudo depende do que está em jogo. Não se pode perguntar a um sujeito, por exemplo, "se ele gosta da democracia". De imediato, a pergunta deve ser: "do que você está falando"? Com isso quero dizer que se tratará, sempre, do conteúdo concreto das coisas. Pode-se incorrer no equívoco de "idealizar" os conceitos e de tentar compreendê-los assim, na condição de fantasmas sem corpo, de conceitos ocos, como buracos de árvore, dentro do qual faz ninho o pássaro que quiser, ovos sem gema nem clara...

2. Hegel já insistira nisso: deve-se olhar para a coisa concreta à sua frente, em lugar de tentar capturá-la por meio de conceitos supostamente "universais", como se um "conceito" pudesse ser aplicado diretamente sobre qualquer coisa conceituável. Recomendo muitíssimo a leitura de Domenico Losurdo, Hegel, Marx e a Tradição Liberal. Fuga da História? também não é nada mal...

3. E volto para meu tema: a relação entre cristãos e democracia. No fundo, tenho pena dos cristãos. Os conceitos são, para eles, batatas quentes - eles tentam segurar os conceitos, mas, quando lhes param nas mãos, tostam-nas, dolorosamente...

4. É que o cristão trabalha a partir de uma única perspectiva: seu monoteísmo ontológico e sua perspectiva subjetiva e política da verdade. No fundo, todo mundo está situado nessa mesma conjuntura - é verdade: cada qual vê o outro a partir de si mesmo... Todavia, a circunstância política, filosófica e teológica do cristão o põe numa situação embaraçosa - porque ele é "Deus", o que não é tão grave, mas é o "único Deus", o que é uma coisa muito perigosa...

5. Democracia. Ele diz que gosta, diz que defende - mas, no fundo, não pode nem gostar nem defender. Não lhe é permitido. Porque, quando os valores democráticos ferem seus valores teológicos, isto é, as "verdades" inquestionáveis do cristão, ele imediatamente suspende o valor da democracia, e joga descaradamente o jogo que sempre joga, mesmo quando diz jogar o jogo democrático: o jogo de "Deus", que, traduzido, é o jogo da verdade cristã. O cristão é "Deus" jogando seu jogo...

6. O cristão faz que é democrático, enquanto a democracia ajuda a implantar seu projeto político-filosófico-teológico. Aí, meus amigos, é uma louvaminhas hiperbólica à democracia... Todavia, quando o povo, de fato, deseja expressar-se, o cristão revela-se um "teocrata" - ingênuo ou de má fé, tanto faz - e apela para "Deus". Democracia em que o povo repete a ladainha: eis do que se trata, a democracia desse cristão... Bento que bento é o frade, frade!, na boca do forno, forno!...

7. O cristão faz tudo que ele mesmo ama ser de "Deus". Vejam o caso da "família". Ele diz que a família é divina - e olha para Gênesis. Todavia, o que ele está dizendo realmente é que o conceito ocidental, cristão e moderno de família é o modelo divino - e ele então faz que põe esse conceito de família em Gênesis (sim, não "sabe ler" - e, quando aprende, inventa, de desgosto, uma bricolagem surrealista de metáforas...). Quando você mostra ao vaidoso cristão que, em Gênesis, está pressuposto, de um lado, o incesto e, de outro, a poligamia, encurralado contra a parede ele esperneia de todo jeito: se você é um parvo, ele sai com oitocentas contra-argumentações alegórico-tradicionais, e você "engole", e ele engole você, mas, se você está apenas desmontando as armas de cerco, chegará a divertir-se, maldade!, com as caretas do moço, tentando achar a saída... Quantos são vítimas! Quantos! Mas outros, descambam para retóricas de "re-humanização", o que, primeiro, revela que entenderam...

8. Quando um cristão usa um conceito, atenção: descubra do que ele está falando. Apesar de tratar-se de uma "lei" fundamental da fé cristã - tratar o outro como quer ser tratado, não é característica do(s) Cristianismo(s) (pluralizar o Cristianismo não faz dele outra coisa que não expressão da sempre e mesma pulsão "divina"), pôr em prática a máxima do "a mim e ao outro" é uma coisa muito difícil para o cristão. Porque ele não pode! O cristão não pode conceder ao outro o que concede a si mesmo, porque apenas ele - e mais ninguém - vê como Deus vê, ouve como Deus ouve, sabe o que Deus sabe e quer o que Deus quer... Das três primeiras faculdades, podemos rir, são, na prática, muito inofensivas: o problema é a quarta... Deus quer o mundo e, eventualmente, nossa cabeça... E o cristão, todavia, sabe disso... Aí, prepare-se...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

4 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi, Osvaldo

Os cristãos não só sofrem com a democracia, mas acabam tornando-se uma ameaça a ela. Veja as manifestações contra o PLC 122 em Brasília, capitaneadas pelo Aiatolá (não vou citar o nome, vc já sabe quem é), as pirraças contra o PNDH, e tantas outras...

Veja também o comportamento da bancada dita evangélica em Brasília. Trataram o juiz que tentou embargar a legalização da união estável entre homossexuais como herói.

E o tratamento recebido por Ricardo Gondim ao expressar as suas opiniões na Carta Capital.

Democracia, tome cuidado, que os "olhos de Deus" estão voltados para você.

Robson Guerra

Antonio Lima disse...

Oi Dr. Osvaldo,
Eu até concordo com essa impossibilidade prática de o cristao agir democraticamente no plano teórico, já que, no plano da salvacao nao há outro Caminho, mas, estamos errados entao? Nao mais devemos pregar o Evangelho a toda criatura, por corrermos o risco de afrontar a crenca do outro, e no mínimo chamá-los de mentirosos ou hereges, o que dá no mesmo? Isso virou uma sinuca de bico, nao acha?

Peroratio disse...

Sim, meu amigo. Para sair desse nó górdio, penso que há duas alternativas, além daquelas que nos manteriam no atoleiro: a) considerar o equívoco histórico que foi o pathos de conquista que tomou de assalto a fé cristã, arrepender-se, e mudar de vida; b) reinterpretar em sentido "humanizador", por assim, dizer, disfarçar de velho o que é, de fato, Humanismo, e fingir que a humanização é o sentido último da fé cristã - como está na moda, para teólogos que não perdem a pose de arautos do mundo... A escolha é de cada um, como foi a do demente norueguês, tomado de algum valor tão profundo quanto o do cristão...

Robson Guerra disse...

Fico com a primeira opção...
Já que considero todo evangelismo uma forma de intolerância religiosa.

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