quarta-feira, 8 de junho de 2011

(2011/344) De estar ou no "mundo de Deus" ou no "mundo dos homens" - de um a(f)(g)astamento atávico da natureza



1. Antes, duas observações: a) sempre posso estar errado. Aliás, acabei de "ouvir" isso. Assumo - dizer qualquer coisa é correr o risco de estar errado. Não me defendo disso. Apenas faço recordar aos meus amigos que o vento que venta cá venta lá. E b) há exceções para a tese que vou defender adiante: há gente, no século XX, que tentou, de alguma forma, superar a dicotomia homem/animal, humanidade/natureza, pensamento/matéria. Mas, para todos os fins, o século XX - na Filosofia, sobretudo - não foi muito além da defesa e manutenção de um "mundo humano" levado às últimas conseqüências - isto é, "isolado" da natureza.

2. Duas palavras muito complicadas: modernidade e racionalidade. Usá-las, primeiro, sem saber do que se está dizendo de fato, e segundo, sem fazer saber do que se está dizendo de fato, só dificulta a comunicação. A modernidade começou em 1453 e terminou! em 1789. O que passa daí, é contemporâneo. Mas usamos a palavra para tratar, hoje, de propostas e proposições daquele período. Nietzsche, por exemplo, odiava a modernidade, ódio visceral: é que ela marca a emancipação das massas, a democracia, a liberdade da chandala, ele diz (Losurdo).

3. Usar a modernidade como referência à superação da metafísica é outro problema. Descartes abre e Kant fecha a modernidade e, ambos, um mais, outro menos, mantêm abertas as janelas do céu - e Kant, justamente, na Ética. Não adianta deixar Descartes de fora, como um fantasma - como assim: vamos escolher os elementos que usaremos em nosso quadro? Trata-se de... arte? Não! Descartes é representativo da modernidade - autonomia em face da autoridade, mas ligações atávicas com o mundo de Deus. Newton, Pascal, Kant...

4. E quanto à racionalidade? Bem, até Descartes, "revelação" - Platão. Entre Kant e o século XIX - "caça ao tesouro": Aristóteles (refiro-me ao Empirismo, naturalmente). Em ambos, a verdade está lá fora: é "divina". Hoje, estamos num mar de confusão. O "mundo humano" nas Ciências Humanas rompeu com Deus - e tanto, que não encontra mais base para a racionalidade, de modo que a saída tem sido, dado o isolamento do homem em seu "mundo humano", tratar a racionalidade como "intersubjetividade discursiva".

5. Pois bem. Pensemos a Ética nesse imbróglio. Ela era "divina". Mas, "sem Deus", como ficamos? A Filosofia não quer olhar para Deus - nem deve, claro! -, mas, como não olha para nada mais além de o próprio homem, que base encontra para ela? Nenhuma. Nem pode. Quer dizer: podia, sim, usar o olhar do outro, da vítima, como fundamento. Mas isso não explicaria o impulso ético em si. E, nesse caso, faz sentido - mas só nesse caso, a declaração de que a Ética - e um livro de Ética - é coisa impossível, porque a Ética é coisa do outro mundo (Wittgenstein, via Jimmy). Não há fundamento no "mundo humano" para fenômenos, aí, que advenham das dimensões prévias desse mundo.

6. Mas há um equívoco fundamental aí. Os animais agem "eticamente". Ou, dito de outro modo, o que chamamos de "ética" tem sua contraparte em nosso inframundo animal. Os mamíferos agem eticamente - os bandos, as famílias, os grupos, as manadas... É biológico o fundamento. Está no DNA - trata-se de rotinas diversas de manutenção das espécies, da vida aqui e agora. Neles, tudo sob controle de DNA. Mas é assim que se explica porque os animais nascem gregários.

7. O homem é - antes de qualquer outra coisa - isso: animal. É daí que vêm, em grande medida, as injunções éticas. No nosso caso, todavia, com maior complexidade, porque, além da ética, temos consciência. A consciência interfere nos processos que, de outro modo, seriam determinados apenas biologicamente. Em nós, posso criar a noção de honra, e, em lugar de matar velhos e crianças, querer matar apenas guerreiros viris. Um leão matar gnus fortes e viris? Pra quê? O que ele quer é carne - e só. Mas nós inventamos a honra... E por quê? Porque temos consciência - e uma ética compatível.

8. Vai buscar os fundamentos humanos fora de seu berço! Primeiro, no céu, agora, no próprio bando, como se nós houvéssemos inventado as práticas que, todos os dias, são testemunhadas em toda a vida animal. Há um que de grego - ainda! - em nós: sentimo-nos como que diferentes desse mundo, de outro mundo, essa não é, de fato, nossa casa. Aí, por razões política, de fato, rasgamos as cartas divinas. Pronto, estamos perdidos nesse planeta menor, nessa favela do Universo. Nossa vingança? Inventar para nós um mundo só nosso, isso chamado "mundo humano". Não é à toa que a Grécia não é apenas dita o berço, mas é também a morada dos filósofos...

9. É divertido, sob certo aspecto. No meio de nossa conversa profunda sobre a "racionalidade" e a "modernidade", sobre a falta de fundamento para a Ética, sobre a hipnótica noção de anti-racionalidade, de anti-realismo, de anti-naturalismo, eis que nosso ventre dá um sinal, as pregas, apitam, e eis-nos correndo para satisfazer as mais humanas necessidades, ora líquidas, ora sólidas, ora gasosas...

10. Falávamos de que, mesmo, cavalheiros?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. senhores, é óbvio que eu sempre posso estar errado. Mas aceitem um conselho: quando a "natureza" chamar - seja qual for sua voz - não teimem: corram!

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