sexta-feira, 27 de maio de 2011

(2011/311) Domenico Schandella, vulgo Menocchio, e Descartes - porque pode-se mudar de cabeça, sem mudar de mundo


1. Um dos livros mais sensacionais que já li - O Queijo e os Vermes - de um de meus historiadores preferidos - Carlo Ginzburg - conta a história de um moleiro italiano do século XVI, que, depois de um longo tempo preso pela Inquisição, sob acusação de heresia, parece ter sido queimado. O livro é recomendadíssimo. Ginzburg recorre aos arquivos do Vaticano, e, aí, aos documentos cartoriais da Inquisição, onde se arquivaram as atas dos interrogatórios do "herege".

2. Menocchio achava que daria para se safar. Mas isso até determinado ponto. Depois, deu-se conta de que estava "frito". Aí, passou a dizer certas coisas muito sérias aos inquisidores - que não queriam que ele, Menocchio, soubesse o que eles, inquisidores, sabiam, porque, se ele soubesse, então ele não dependeria mais dos padres: conhecimento era poder, controle do conhecimento, administração pública por meio da religião. Outra coisa: ordenação, consagração, era mercadoria. "Eles não querem que nós saibamos o que eles sabem", ele dizia. Aliás, ele disse diretamente, olhando-os nos olhos...

3. E, todavia... A certa altura Menocchio diz que os padres não deixam que todas saibam as penitências que devem fazer para cada pecado. O sistema exige que o pecador dirija-se ao padre e fique, então, pela consulta sagrada, ciente de qual penitência cabe a seu pecado, e essa penitência, a sua justa medida, é declarada sacramentalmente pelo padre. Mas, alega, se o povo soubesse antecipadamente que penitências devem ser aplicadas a que pecados, se o povo tivesse a lista de correlações, não precisaria dos padres - liberdade! E os padres não queriam isso...

4. Bem, de um lado, é a audácia protestante diante da autoridade religiosa: eu mesmo posso decidir por mim mesmo... Por outro lado, a manutenção do velho mundo: tenho pecados, devo pagar por eles, mas qual o preço? Só o padre sabe. Menocchio não questiona o mundo em que vive, não questiona que não tenha pecados, assume-os, é um homem do mundo em que homens têm pecados, é cristão. O que ele questiona é a autoridade clerical. Muda a cabeça - mas permanece no mundo de sempre. Bem, pelo menos até que tenha tido as carnes assadas e a alma desgraçada, é claro...

5. Descartes, século XVII. É outro Menocchio. Quer saber com certeza como se pode saber com certeza e por si mesmo, sem o recurso à autoridade. Escreve Discurso sobre o Método. Quer garantias sobre o conhecimento seguro. Mas eis seus pressupostos: a) eu sou a minha alma; b) a alma que eu sou é criada por Deus, c) a alma que eu sou, criada por Deus, não tem parte com a matéria, d) é essa alma, que eu sou, quem pensa, e e) essa alma, logo seu pensamento, é racional... E, nos termos da última página do Discurso, espera-se ter demonstrado a existência da alma e de Deus, para que não se vá, como por aí se vai, imaginando que não há nem um nem outro, nem o que se temer no além...

6. Não é o mesmo mundo de Menocchio? Menoochio tem pecados, Descartes tem alma. Não é o mesmo caso? Ambos desejam livrar-se da autoridade - eclesiástica -, mas ambos são homens daquele mundo, nasceram nele, vivem nele, e permanecem nele: alma racional...

7. Eu temo que grande parte das Ciências Humanas, grande, superlativa parte, ainda viva nesse mundo, mas, de um modo tão sutilmente transformado, que se julga ser outro: saiu a alma, saíram os pecados, mas os pressupostos presentes nas implicações de ser a alma a agente do pensamento, permanece. O homem não tem parte com a matéria: é único, imagem e semelhança, se não de Deus, de si mesmo, uma especificadade cósmica, a viver no mundo humano, fora do mundo da natureza... "Mundo humano", "mundo hermenêutico" - uma paródia antropológica, "humanista", do "mundo de Deus" - de Deus não é, aceita-se, mas é do homem...

8. Mas, Osvaldo, ainda que seja assim, não se saiu, de fato, do mundo em que Menocchio e Descartes viviam? Bem, eu responderia: saiu-se da descrição mitológica dele, mas, dele mesmo, tenho dúvidas. E a maior demonstração disso são os discursos de racionalidade discursiva intersubjetiva: o racional, o real que nos cabe, são nossos discursos... o verbo. Um verbo menor, desgastado, mas, que seja: o Verbo... Verbo e Narrativa... Carne mesmo, cadê?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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