quinta-feira, 19 de maio de 2011

(2011/297) Da celeuma sobre o livro didático do MEC que, disseram, ensina a falar errado


1. Não vou me meter no assunto de modo incisivo. Vou tangenciá-lo. Refiro-me à discussão sobre o livro Por Uma Vida Melhor, que a mídia inteira e muita gente boníssima espinafraram, alegando que o MEC estaria ensinando a falar errado. Bem, antes de tratar dos comentários, reportem-nos ao próprio livro, para o que apresento uma imagem da página em questão:


2. "Posso falar 'os livro1? Claro que pode (...) O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião". Eis, em resumo direto, o que o livro fala. Sim, eu posso falar "os livro", mas preciso saber onde falo "os livro". Eu, por exemplo, e agora galo de mim mesmo, costumo falar "os cachorro", quando converso com Bel. Nem ligo. Não falaria assim numa aula, nem numa reunião, ralvez nem na rua, mas em casa, entre amigos, falo, e sei que, assim, não uso a norma culta - mas sei que faço assim porque é econômico.

3. Dói o ouvido? Pode ser, mas você se acostuma. Vejam o caso do hebraico. O artigo é "ha" (lê-se "rá"). É o mesmo para gênero e número: hasus = o cavalo, hasusah = a égua, hasusim = os cavalos e hasusot = as éguas. Cavalo, égua, cavalos e éguas, mudam - o artigo, não, é sempre o mesmo: "ha". E por que o judeu não sente dor nos ouvidos? Porque o uso do artigo variável ou não não é como a altitude, que nos afeta necessariamente os canais auditivos - mas se trata de cultura, e, com cultura, a gente se acostuma. Estranha, mas acostuma.

4. Todavia, o livro não está dizendo que você deve falar "os livro" em qualquer lugar. Há lugar onde a norma culta é recomendada. Um sermão, por exemplo: eu até agüento (fazer o quê?) um sermão sem pé nem cabeça em termos bíblicos e teológicos, já desisti, mas, com realão ao português, aí não dá, se o pregador dana a falar "os livro", meu corpo reclama e dá coceira. Mas, se estou entre colegas, conhecidos, amigos, em ambiente formal, desligo o coceirômetro. Trata-se de "contexto", onde se pede chus e onde se pede bus. Mas isso hoje, porque ninguém pode garantir nada sobre o amanhã.

5. Mas falei que não trataria do tema. Deixo-os com dois textos, que transcrevo. Um, defendendo denodadamente o zelo com a língua pátria, do excelente Mario Santayana. Outro, não podia ser outro nem diferente, explicando que a mídia está, de novo, reprovada em lingüística, porque sequer sabe ler.

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Aceitam tudo

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

De vez em quando, alguém diz que lingüistas "aceitam" tudo (isto é, que achamcerta qualquer construção). Um comentário semelhante foi postado na semana passada. Achei que seria uma boa oportunidade para tentar esclarecer de novo o que fazem os linguistas.

Mas a razão para tentar ser claro não tem mais a ver apenas com aquele comentário. Surgiu uma celeuma causada por notas, comentários, entrevistas etc. a propósito de um livro de português que o MEC aprovou e que ensinaria que é certo dizer Os livro. Perguntado no espaço dos comentários, quando fiquei sabendo da questão, disse que não acreditava na matéria do IG, primeira fonte do debate. Depois tive acesso à indigitada página, no mesmo IG, e constatei que todos os que a leram a leram errado. Mas aposto que muitos a comentaram sem ler.

Vou tratar do tal "aceitam tudo", que vale também para o caso do livro.

Primeiro: duvido que alguém encontre esta afirmação em qualquer texto de linguística. É uma avaliação simplificada, na verdade, um simulacro, da posição dos linguistas em relação a um dos tópicos de seus estudos - a questão da variação ou da diversidade interna de qualquer língua. Vale a pena insistir: de qualquer língua.

Segundo: "aceitar" é um termo completamente sem sentido quando se trata de pesquisa. Imaginem o ridículo que seria perguntar a um químico se ele aceita que o oxigênio queime, a um físico se aceita a gravitação ou a fissão, a um ornitólogo se ele aceita que um tucano tenha bico tão desproporcional, a um botânico se ele aceita o cheiro da jaca, ou mesmo a um linguista se ele aceita que o inglês não tenha gênero nem subjuntivo e que o latim não tivesse artigo definido.

Não só não se pergunta se eles "aceitam", como também não se pergunta se isso tudo está certo. Como se sabe, houve época em que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou quem dissesse "quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?"

Ou seja: não se trata de aceitar ou de não aceitar nem de achar ou de não achar correto que as pessoas digam os livro. Acabo de sair de uma fila de supermercado e ouvi duas lata, dez real, três quilo a dar com pau. Eu deveria mandar esses consumidores calar a boca? Ora! Estávamos num caixa de supermercado, todos de bermuda e chinelo! Não era um congresso científico, nem um julgamento do Supremo!

Um linguista simplesmente "anota" os dados e tenta encontrar uma regra, isto é, uma regularidade, uma lei (não uma ordem, um mandato).

O caso é manjado: nesta variedade do português, só há marca de plural no elemento que precede o nome - artigo ou numeral (os livro, duas lata, dez real,três quilo). Se houver mais de dois elementos, a complexidade pode ser maior (meus dez livro, os meus livro verde etc.). O nome permanece invariável. O linguista isso, constata isso. Não só na fila do supermercado, mas também em documentos da Torre do Tombo anteriores a Camões. Portanto, mesmo na língua escrita dos sábios de antanho.

O linguista também constata the books no inglês, isto é, que não há marca de plural no artigo, só no nome, como se o inglês fosse uma espécie de avesso do português informal ou popular. O linguista aceita isso? Ora, ele não tem alternativa! É um dado, é um fato, como a combustão, a gravitação, o bico do tucano ou as marés. O linguista diz que a escola deve ensinar formas como os livro? Esse é outro departamento, ao qual volto logo.

Faço uma digressão para dar um exemplo de regra, porque sei que é um conceito problemático. Se dizemos "as cargas", a primeira sílaba desta sequência é "as". O "s" final é surdo (as cordas vocais não vibram para produzir o "s"). Se dizemos ¿as gatas", a primeira sílaba é a "mesma", mas nós pronunciamos "az" - com as cordas vocais vibrando para produzir o "z". Por que dizemos um "z" neste caso? Porque a primeira consoante de "gatas" é sonora, e, por isso, a consoante que a antecede também se sonoriza. Não acredita? Vá a um laboratório e faça um teste. Ou, o que é mais barato, ponha os dedos na sua garganta, diga "as gatas" e perceberá a vibração. Tem mais: se dizemos "as asas", não só dizemos um "z" no final de "as", como também reordenamos as sílabas: dizemos as.ga.tas e as.ca.sas, mas dizemos a.sa.sas ("as" se dividiu, porque o "a" da palavra seguinte puxou o "s/z" para si). Dividimos "asas" em "a.sas", mas dividimos "as asas" em a.sa.sas.

Volto ao tema do linguista que aceitaria tudo! Para quem só teve aula de certo / errado e acha que isso é tudo, especialmente se não tiver nenhuma formação histórica que lhe permitiria saber que o certo de agora pode ter sido o errado de antes, pode ser difícil entender que o trabalho do linguista é completamente diferente do trabalho do professor de português.

Não "aceitar" construções como as acima mencionadas ou mesmo algumas mais "chocantes" é, para um linguista, o que seria para um botânico não "aceitar" uma gramínea. O que não significa que o botânico paste.

Proponho o seguinte experimento mental: suponha que um descendente seu nasça no ano 2500. Suponha que o português culto de então inclua formas como "A casa que eu moro nela mais os dois armário vale 300 cabral" (acho que não será o caso, mas é só um experimento). Seu descendente nunca saberá que fala uma língua errada. Saberá, talvez (se estudar mais do que você), que um ancestral dele falava formas arcaicas do português, como 300 cabrais.

Outro tema: o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso.

O linguista não propõe isso por duas razões: a) as pessoas já sabem falar os livro, não precisam ser ensinadas (observe-se que ninguém falao livros, o que não é banal); b) ele acha - e nisso tem razão - que é mais fácil que alguém aprenda os livros se lhe dizem que há duas formas de falar do que se lhe dizem que ele é burro e não sabe nem falar, que fala tudo errado. Há muitos relatos de experiências bem sucedidas porque adotaram uma postura diferente em relação à fala dos alunos.

Enfim, cada campo tem seus Bolsonaros. Merecidos ou não.

PS 1 - todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado.

PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: "quando eu TAVA na escola...". Uma carta de leitor que criticava a forma "os livro" dizia "ensinam os alunos DE que se pode falar errado". Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!


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Linguagem e soberania
por Mauro Santayana


A civilização se define como a reunião dos homens em cidades, construídas a fim de os proteger das intempéries e tornar a vida mais amena. A troca de experiências levou-os a aspirações ainda maiores, ao êxtase diante da beleza das cores e dos sons, ao surgimento da arte. Recentemente se descobriu o que os arqueólogos consideraram o primeiro instrumento musical: flauta feita a partir do osso de um abutre, e datada, conforme os estudos, de há 35.000 anos.

O homem chegou ao momento mais alto de sua razão na chamada idade axial, que, conforme Karl Jaspers, ocorreu entre o século 8, antes de Cristo e o século 2, de nossa era. O desenvolvimento da inteligência e dos sentimentos de transcendência, naquele milênio, na China, na Índia e no Mediterrâneo, praticamente esgotou o potencial da mente humana. O que marcou o período foi o aprimoramento da linguagem escrita, que transmitiu ao futuro a experiência do passado e incitou o desenvolvimento das idéias. A partir daí, o processo tem sido o polimento de um poliedro translúcido. Sua essência, volume e forma não se alteraram. É como se fosse um depósito de luz, espécie de prisma, que reflete o todo cósmico, para orientar a construção permanente do homem.

A linguagem evoluiu dos primeiros grunhidos, que expressavam o medo, o pedido de socorro, a conquista da fêmea ou do macho, o êxtase diante da beleza de um pássaro, ou a tristeza do luto, até os cantos de Homero, os dramas gregos, as novelas de Cervantes e os poemas de Shakespeare. A civilização é, assim, o processo da evolução da linguagem. Sem a inteligência comum dos grupos, a que chamamos cultura, os sentimentos humanos minguariam, cedendo lugar aos instintivos grunhidos dos hominídeos. Demolir a linguagem é demolir o homem. Quando se trata de política de Estado, é crime contra o povo.

Não surpreende que o Ministério da Educação aceite a iniciativa de professores de português em destruir a bela língua que surgiu no norte da Península Ibérica, a partir do dialeto galego, e cuja expressão literária se deve a prosadores como Fernão Lopes. Além de essa agressão vir desde o governo de Fernando Henrique, ela é coerente com o estiolamento do processo civilizatório, a que estamos assistindo nesta passagem de milênio. Significa a completa falência do estado contemporâneo, aqui e alhures. Muitos dos professores que advogam a anarquia da linguagem – felizmente, não todos – ao estimular a redução das frases a meras aproximações da mensagem, fazem-no, provavelmente, em causa própria. Não conhecendo os mecanismos da sintaxe, da semântica, da morfologia, são incapazes de ensinar. Os pais e avós se espantam com os grosseiros erros de linguagem cometidos por certos mestres.

A língua não é exata. Toda linguagem, dizem os especialistas, é imperfeita. Os idiomas se sujeitam às mudanças da sociedade, mas, dialeticamente, ao enriquecerem, enriquecem seus usuários, e, ao empobrecerem, corroem a cultura e a ética das nações. Essa erosão contribui para o embrutecimento assustador do homem, que se manifesta no envenenamento de moradores de rua nas grandes cidades brasileiras e no pandemônio psíquico de pessoas, como o matador de crianças no Realengo. E se expressa também no terrorismo de Estado.

Quando “especialistas” em educação expõem as teorias mais confusas e pedantemente elaboradas, prenhes de termos técnicos e vazias de significado, cabe ao Estado determinar o retorno às cartilhas de há 60 anos, para o aprendizado da Língua Pátria, em toda a sua riqueza, e à tabuada, base da razão matemática. Só a velha escola pode trazer homens novos ao mundo, capazes de entender o tempo e salvar a espécie da destruição que a ameaça.

Textos como os de “Contos Pátrios”, escritos por bons escritores (como Olavo Bilac e Coelho Neto) deveriam ser adotados. A língua é o fundamento da soberania.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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