1. Numa troca noturna e soturna de mensagens, Jimmy me retruca com essa citação não creditada. Não precisa que seja. A verdade independe de quem a diz. E me parece sumamente verdadeiro que seja assim mesmo: herege é quem - e todo aquele que - ousa escolher.
2. Eis que essa declaração/citação de Jimmy me reporta a Gênesis 2 e 3. Já disse que a tradução de tov e ra', ali, me parece equivocada - não se trata de "bem" e "mal". Trata-se de "bom" e "mau", de "o que é bom" e de "o que é mau". Trata-se, então, da capacidade de "Adão" e "Eva" decidirem, por si mesmos!, o que é bom e o que é mau. E, quando decidem, fazem-se como os deuses! Autonomia, liberdade, essas coisas que fazem arder a ira hierocrática...
3. Naturalmente que para uma sociedade religiosa, sacerdotal, hierocrática, teocrática, a população não pode ter o poder de escolha - deve, apenas, obedecer, repetir. A sabedoria popular já sabe disso: bento que bento é o frade, frade!, na boca do forno, forno!, tudo que seu mestre mandar: faremos todos!, e se não fizer?, levaremos um bolo! Adão e Eva, esse Adão e essa Eva que nos representam no projeto hierocrático de Gn 2 e 3, devem obedecer, e mais nada. Não podem escolher. Não podem decidir. Não podem ousar. Têm de ser bons meninos. Têm de ser comportados. Têm de ser bovinos. Ovelhas...
4. Disfarça-se a questão, disponível à consciência moderna, transformando o que se tratava de autonomia em moralidade - a moralina dos filósofos cristãos. Mas até esse é um movimento de controle, de boiadeiros, de pastores, conseqüentemente.
5. Nesse sentido, todo homem iluminista é um herege em potencial, e, se de fato é iluminista, materializa-se nele a infração do Paraíso - ele ousa saber, ele ousa escolher, ele sabe, ele escolhe. E isso a despeito de Deus, porque, justamente por ser iluminista (conquanto essa sabedoria está disponível a um Menocchio do século XVI), o que os homens falam como sendo de Deus e Deus falando não passa de um movimento fisiológico do ventre, gases que sobem e assumem a forma da voz de Deus... Mas não é nada disso: e todos sabem. Saber pode: escolher é que não. O herege é o desmancha-prazer de Johan Huizinga. Resta saber o que sobra aos demais - quando é que jogam honestamente e quando é que trapaceiam. O que de resto pouca diferença faz...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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