domingo, 21 de novembro de 2010

(2010/573) Oração e magia


1. Talvez seja difícil para um cristão protestante / evangélico, histórico / tradicional, reconhecer que oração é ato de magia. No entanto, o fato de haver resistência diante da aceitação de fatos não decide a questão para o lado da resistência - que o diga a teoria geocêntrica! Oração é magia.

2. Duas observações, para ajudar a compreensão do fato de que a oração é magia. Primeiro: magia é o ato simpático por meio do qual se opera, através de um agente substitutivo qualquer, uma fonte poderosa presente fora do alcance direto do operador mágico. Ou seja: a divindade encontra-se "do outro lado", eu, "do lado de cá". Eu crio, descubro, aprendo, seja como for, um modo de, através de um objeto, de um gesto, de um rito, de uma palavra - simbólicos, naturalmente, por isso, substitutivos, representativos, simpáticos - existentes ou operados do lado de cá, agir sobre a fonte do poder, que está do lado de lá. Quando isso se dá, eu passo a poder servir-me daquele poder, que, apesar de estar distante, torna-se acessível por meio da magia que eu opero.

3. No Cristianismo, os "sacramentos" cristãos são um bom exemplo de magia: a "graça" divina atinge o homem através da operação desses "ritos": batismo, crisma, eucaristia, casamento, ordem, extrema unção e confissão, para o caso católico-romano. É muito interessante, porque a "graça" aí deixa-se subentender como uma "energia" que pode ser acessada por meio do rito. Lembra muito aquela passagem em que Jesus alega ter sido tocado, e, diante da estupefação dos discípulos, assevera que disso teria certeza, porque dele teria saído "virtude" - Jesus aí é quase pensado, se já não é, como um pote de energias mágicas, a que se pode acessar, inclusive, sem o seu consentimento expresso... O Protestantismo abriu as portas para a racionalização da fé, de modo que os sacramentos - flagrante ululante de concepção mágica - vão, a pouco e pouco, até a totalidade (no caso batista), dando lugar à operação platônica da crença na verdade como processo de salvação - com o que, todavia, estamos, de novo, diante da magia simbólica das palavras, tomadas, contudo, como reais.

4. A segunda observação é que o caráter prático da magia dependerá da configuração representativa da divindade: se a divindade é pensada como "pessoal", a magia há de ser operada em consonância com essa informação; se a divindade é impessoal, energética, nesse caso, do mesmo modo, a magia corresponderá a essa caracterísitica indisfarçável. Bem sabido: falo do modo como a comunidade imagina a divindade: é a isso que se resume a antropologia da religião.

5. Sendo assim, se o fiel tem na divindade a representação de uma "pessoa", a magia, isto é, a oração, deverá transformar-se em rito que se enquadre na relação interpessoal: aqui cabe bem aquela passagem em que a viúva deve insistir infinitamente junto ao juiz, para que este lhe faça justiça - é a insistência, até que a paciência do juiz transborde e, para ver-se livre do tormento da viúva a lhe azucrinar os ouvidos, a atenda, a chave da oração, isto é, da magia... Por outro lado, se a divindade é pensada como energia, a situação transforma-se radicalmente - a oração se converterá no processo segundo o qual o fiel deve aprender a operar rigorosamente a rotina correta da magia, da mesma forma como se deve apertar o interruptor, para que a luz acenda. Lembram-se de David (Paul) Young Cho e sua orientação quanto ao modo "correto" de orar? Você deveria dar os detalhes mais insignificantes de seu pedido, caso contrário, "Deus" não teria como atender... Considero que essa orientação traduza a miscigenação entre um conceito pessoal de Deus - o modo clássico do Ocidente cristão - e um cnceito oriental de Deus - o conceito impessoal, energético, de divindade -, miscigenação favorecida pelo fato de se estar, nesse caso, na Coréia do Sul, centro de confluência dos dois lados do planeta, logo, das duas concepções essenciais de divindade. Uma vez que Deus é, aí, pensado parte como pessoa e parte como energia, de um lado, a oração é, ainda, "pedido", e, de outro lado, ela é manejo eficiente do rito adequado. Não sabeis pedir...

6. Tanto o judaísmo tardio quanto o cristianismo tiveram suas rusgas contra a magia. Quando nos damos conta de que a oração - rito máximo dessas duas religiões - constitui, nada mais, nada menos, expressão clássica dessa própria magia, chegamos à condição de compreender que a disputa judaico-cristã não era com a magia em si, uma vez que a oração e os sacramentos são magia, mas uma luta contra a magia não controlada pelo clero e pelas mediações internas da fé judaico-cristã: judaísmo e cristianismo são casos clássicos de aprisionamento da divindade, para instrumentalização dela, a serviço de um clero institucionalizado, mercê da necessidade que dela cuidam ter os fiéis - se de fato têm ou não, não vem ao caso... Aprisionada, a divindade esqueceu-se - até! - de seu próprio nome. Independentemente disso, todavia, a interminável fila dos fiéis ainda crê que não ter, a divindade, nome, e não saberem, os fiéis, o nome dela, não impede que a sua energia seja catalisada para a satisfação das necessidades triviais da vida, e a manutenção do status quo dos sacerdotes. Parece, então, que a fé da oração mágica é maior do que a dos exorcismos mágicos, porque, no caso deles, é necessário ao menos saber-se o nome dos diabos a despejar...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Solange Barifouse disse...

Instigante texto. E vem como um clarão que brilha do Oriente ao Ocidente e vice-versa, na consciência da gente.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio