segunda-feira, 15 de novembro de 2010

(2010/569) Da religião e eu


1. Num primeiro estágio, a religião serve para a mesa - é um nível de magia capitalista: você negocia com os deuses seu prato de comida, seu pão, sua água, sua manutenção e sobrevivência. Agora, você está na dependência do dia a dia, de comer, de viver. A vida lhe é difícil, muito, você tem falta de tudo, e o que você quer, pelo amor de Deus!, é manter-se vivo, e fará de tudo, até humilhar-se, ajoelhar-se, chorar, rezar, fazer todos os ritos, recitar todos os mitos, declamar todos os poemas e cantar todos os hinos, fazer todos os sacrifícios possíveis - para comer e beber.

2. Mas essa fase passa. Agora, você quer aceitação pública, quer sua tribo, quer o reconhecimento, quer o status, quer o sentimento de bando, de rebanho, quer os amigos, quer as pessoas, quer o grupo. A comida é farta, já, o salário, bom, a vida, encaminhada, e o que você quer é ter aquele lugar seu, onde você e seus amigos estão reunidos em torno do altar. Fará o que for necessário - cantará, jejuará, rezará/orará, dizimará, praticará todos os ritos, recitará todos os mitos, tudo, em nome de estar ali, com os seus.

3. Mas há, ainda, outro nível. Nele, entendam, meus amigos, não é a comida, mais, não são os amigos, ainda - é, agora, a liberdade: tudo o que você quer, pelo amor de Deus!, é estar livre, sentir-se livre, voar, purificar-se das amarras, das cordas, quer até cantar, se vontade der, recitar velhos mitos, nostalgicamente, como quem de um bom filme se recorda, e o revive, mas pôr os olhos lá distante, onde homem algum ousou domesticar um deus e fazer pequenas estátuas - de gesso ou de idéias manipuláveis. Há um nível em que a religião se torna caixão - e, aí, só resta ao corpo ressuscitar para a liberdade de uma vida autodeterminada, de uma vida verdadeiramente livre. Não basta à religião dizer-se libertadora - ela deve sê-lo: e, na esmagadora maioria delas, não o são.

4. Não há coisa mais desejável do que sonhar que está voando. É a alma a dizer alguma coisa ao corpo...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

3 comentários:

Solange Barifouse disse...

Direto! Perfeito! E esse terceiro momento é inegociável. "Não há maior poder que a liberdade de cair fora." (Harriet Rubin).
Abraço.

Anônimo disse...

Osvaldo,

às vezes parece que as religiões que mais aprisionam tem o potencial libertador maior que as que se declaram libertadoras.

Isso porque naqueles que pertencem à primeira, o desejo do voo é maior, ou até mesmo necessário, para que se não morra.

Já na segunda, uma corda mais comprida amarrada em um dos pés que me permite dar pequenas batidas de asas de galinha, mas logo tensionada, desestabiliza e impede o voo. A não ser é claro para os que sabem voar em circulos, e com isso se contentam, e a isso chamam liberdade.

Abs,

Prisca disse...

Ah! :( Já disse, num comentário mais a frente... Não entendo, o que é Liberdade? Afinal?

http://recantodasletras.uol.com.br/poesias/1174717

Faz anos que busco descobrir.

Liberdade, como é almejada!
Infelizmente, nunca será conquistada
Afinal, o que é esta tal liberdade?

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