sexta-feira, 22 de outubro de 2010

(2010/525) Testosterona, Progesterona, Estrogênio - arcanjos de Deus para a cosmogonia humana


1. Os evolucionistas deveriam dizer: a Natureza é sábia. Por sua vez, os criacionistas deveriam dizer: Deus é sábio. Não importa se Deus ou se a Natureza - quem quer que seja o responsável por essa trindade hormonal é sapientíssimo.

2. O homem é um aninal. Indiscutível. Mas é um animal bastante específico. Por exemplo: o cérebro dele nasce pronto, mas apenas a estrutura bruta. Os neurônios estão lá, mas, a rigor, não são os neurônios os responsáveis pelo funcionamento da mente, mas são as sinapses, os "encontros" entre as terminações dos neurônios. É o entroncamento, na casa dos bilhões, desses encontros que se estrutura a mente humana. E esses entroncamentos vão se formando em escala exponencial a partir do nascimento (são relativamente muito poucos, enquanto o feto encontra-se em formação, no útero). É a vida em si, da criança, isto é, seu desenvolvimento situado, histórico, na família e na sociedade, que vai proporcionando a estruturação das sinapses, e se vai formando, então, a mente humana.

3. Isso quer dizer que essa criança é vítima passiva de um processo de transmissão necessária de cultura que, literalmente, a forma, inclusive também bio(fisio)logicamente! Ela depende indiscutivelmente dos pais, da sociedade, da escola, mas, além desses elementos, surgem, historicamente, outros - o Estado, a religião, a cultura de modo geral. No conjunto, esses fatos sociais moldam bio(fisio)logicamente o cérebro da criança, e, com ele, agora já no nível psicológico, a sua mente. É um conjunto muito grande e forte de imprintings sociais, a formar e formatar a mente da criança, a torná-la cada vez mais ambientada com a tradição onde nasceu e, provavelmente, morrerá.

4. Há casos de superproteção. Pobre criança. Ficará atrofiada - disso o sabe, muito bem, Filho Único, de Erasmo Carlos. Mas, mesmo nos casos em que não haja superproteção, em que a socialização, a inculturação, a tradicionalização, se der de modo normal, a criança tenderá a uma passividade cultural cada vez mais forte. A cada ano, sua força se tornará um elemento de manutenção da cultura, e a criança, em si, se transformará num (mero?) agente transmissor dessa própria cultura... Cultura essa que, afinal, converter-se-á numa jaula, numa prisão, nA Vila...

5. Ora, e porque, então, os homens não vivem na mesma cultura desde que surgiram sobre a Terra? Porque a cultura de hoje é diferente da de há 200, 500, 1.000, 10.000 anos? Se ela é essa jaula - e dela não fugimos (nunca?) (como o quer Gadamer), como, na prática, aleluia!, fugimos, sim?

6. Porque, a certa altura do desenvolvimento da criança, uma trindade de arcanjos divinos (ou de diabos infernais, se preferirem) emerge das profundezas da criança. Ah, essa Alquimia mistério-maravilhosa! Não, ela, a Trindade, não vem de fora, não - ela já fora colocada lá dentro, bomba-relógio, ovo de serpente!, asas de dragão!, esperando, esperando, esperando... Quando chegar a hora, Testosterona, Progesterona e Estrogênio vão abrir as asas, arrancar aquela vida aculturada, dentro da qual habitam, das mãos da coação cultural, e vão oportunizar a ela a autonomia, a independência, a força e a coragem, que, com os tijolos da própria jaula, hão de construir outra - mas sua, se assim o desejar...

7. É a ação dos hormônios sexuais a chave para a ligação da máquina de autonomização na criança, preparando-a, dando a ela todas as condições de tornar-se um ser-humano, agora, sim, completo, dono de seu próprio nariz. Não haveria Kant (o primeitro) se não houvesse Darwin! - e isso foi o que Dilthey entendeu muito, muitíssimo bem...

8. Não é por outra razão que a sexualidade, a pulsão erótica, é a grande inimiga das religiões autoritárias, coercitivas, manipuladoras, porque tais religiões - assim também as grandes sociedades manipuladoras -, por meio de seus líderes esclarecidíssimos, Deus lhes pague, projetam a alienação continuada das consciências. Bel, uma vez, me disse: pessoas sexualmente livres [e felizes] são difíceis de serem comendadas e manipuladas (e ainda há quem ache que eu fiz a cabeça de Bel!)... Notem, amigos, que o "pecado" de Eva nada, absolutamente nada tem a ver com sexualidade, como o quer fazer crer a Propaganda. Mas o castigo que sofreu, isto é, o lugar onde os sacerdotes que redigiram o texto escolheram, genialmente, para a castigar, onde foi?, sim, justamente aí, no centro de sua expressão sexual, seu desejo, para a castrar e, castrando-a, matar.

9. Não é outra a razão pela qual líderes religiosos, os mais fundamentalistas (quanto a alguns, Freud explicaria um estado latente, dito "enrustido", porque tanto ódio apenas esconderia uma vingança de si mesmo, e uma hipocrisia inquisitorial compreensível, isto é, que se pode esclarecer historicamente [de um, em particular, particularmente dedicado à causa, Bel diz que, se o encontrar, recomendará que saia do armário...]), lançam-se em campanhas engajadas contra o homossexualismo, porque a homossexualidade joga contra todas as cartilhas culturais, e representa um grau de afronta cultural/educacional e autonomia do corpo que supera provavelmente qualquer outro, porque a sexualidade, aí, desagragou-se definitivamente da funcionalidade biológica, e migrou para a estética do prazer e do jogo, que representa uma alforria do sujeito contra a cultura repressiva, difícil de ser dissimulada.

10. Penso que o discurso católico da manutenção do sexo restritamente à procriação seja, malgrado seu anacronismo e estupidez, uma estratégia compreensível. Ela carrega em si a compreensão de que, se se permite que a sexualidade seja movida do âmbito da procriação funcional para o âmbito do prazer subjetivo (e cosmogônico!), ela, a sexualidade, perde suas amarras ditas funcionais, assim como, em algum momento, a boca, que é de falar e comer, inventou de beijar - do que sabe a Bíblia, e disso gosta, a julgar por Cantares, onde até se aprende o beijo de língua. Penso que os católicos deveriam ser absolutamente contrários ao beijo...

11. O mais interessante dessa questão hormonal é o fato de que não se pode culpar nenhuma cultura: os hormônios estão lá, já, desde o parto, esperando o dia e a hora, e, quando chegam, não há como segurar a sua potência, a sua capacitação para a autonomia. Trata-se de um projeto biológico, que, surpreendentemente, sabe como as coisas funcionam, e entende que um animalzinho assim tão necessariamente preso à cultura educacional de pais, família, sociedade, escola, religião, Estado, precisará de uma força extraordinária, mas, ainda assim sua, para vencer todas as limitações a ele impostas e saltar para a sua própria libertação e autonomia.

12. Lembra, a seu modo, uma parábola em O Pobre de Deus, de Kazantzakis, quando o caracol, querendo alcançar a imortalidade, é ridicularizado por um Pedro cioso das condições para tanto, ao que o caracol assevera ter espada e asas, e, quando Pedro dá por si, ele as abre, porque as tinha dentro de si, e entra, vitorioso e livre... Eventualmente, nosso hormônios nos ajudam é a sair, o que é tanto mais vitorioso, eu diria...

13. Com vocês, essa pérola, essa jóia de texto, extraído de O Pobre de Deus, de Kazantizaks, diante de cuja pena a minha, que aqui gastei, curva-se, em reconhecimento:

Certa noite, arrasados pelo frio e pela fome, encharcados até os ossos, divisamos ao longe um mosteiro iluminado. Desatamos a correr, na esperança de que os monges, tomados de piedade, nos deixassem entrar, dando-nos um pedaço de pão e permitindo-nos sentar perto do fogo. Chovia, a escuridão era densa, caíamos nas valas do caminho, para logo em seguida reiniciar a corrida. Eu maldizia a chuva, as trevas e o frio. Francisco, pelo contrário, seguia adiante, improvisando canções. "Que maravilha", cantava, "quantas asas no lodo! Deus está no ar! Senhor, quando as larvas pensam em Ti, transformam-se em borboletas!”.

Abria alegremente os braços para sentir a chuva e o vento. "Minha irmã, a lama", gritava, patinhando nas poças d’água. "Meu irmão, o vento!”.

Parou e esperou por mim. Eu me havia ferido ao cair num carreiro e coxeava.

- Irmão Leão - disse -, acabo de compor uma pequena canção. Queres ouvi-la?

- Isto não é hora de improvisar canções, Irmão Francisco - respondi, agastado.

- Se não as fizermos agora, quando as faremos, Irmão Leão? Escuta: o primeiro animalzinho que se apresentou à porta do paraíso foi o caracol. Pedro se inclinou e o acariciou com a ponta do báculo: "Que vens procurar aqui, caracolzinho?", indagou-lhe, "A imortalidade", respondeu o bichinho. Pedro soltou uma gargalhada. "A imortalidade? E que pretendes fazer com ela?" "Não rias", replicou o caracol. "Por acaso não sou também criatura de Deus? Não sou filho de Deus, como o arcanjo Miguel? Chamo-me arcanjo Caracol, pronto!" "E onde estão tuas asas de ouro, tuas sandálias vermelhas, teu gládio?" "Carrego-os dentro de mim. Dormem, esperam." "Esperam o quê?" "O Grande Momento." "Mas que Grande Momento?" "Este", respondeu o caracol, e enquanto falava deu um salto e entrou no paraíso.

"Compreendeste?", perguntou rindo. "Somos caracóis, Irmão Leão. Dentro de nós dormem as asas e o gládio, e se quisermos entrar no paraíso precisamos dar o salto. Anda, vamos, meu atleta, salta!”



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio