terça-feira, 22 de junho de 2010

(2010/418) Da intenção de quem age - logo, escreve


1. Apontando-as para a câmera de TV, aos olhos de milhões de telespectadores, com uma das mãos ele fez o número cinco, deixando-a aberta, cada dedo escancarado, e, com a outra, fez o clássico número um, indicador apontando para onde, há séculos, ficava o templo dos deuses, e, agora, o vazio cósmico. No conjunto, o gesto comemorativo de Luís Fabiano construía a imagem de um número - seis. Diante do mundo, após o gol contra a seleção da Costa do Marfim, o jogador da seleção brasileira (man)dava seu recado. Que, a despeito de imagético, era, em si mesmo, mudo. Era simbólico.

2. E, se era símbólico, demandava, automaticamente, interpretação. O comentarista da TV, imediatamente seguido pela fileira interminável dos repercutidores da mídia, santificaram: trata-se, com esse número seis, de uma catarse - Luís Fabiano estava havia seis jogos sem marcar - e, agora, ele acabava com o jejum. Assim, diante do símbolo de dedos e mãos, a interpretação era categórica: acabou a temporada de redes paradas...

3. Mas não era nada disso. Estava completamente errada a interpretação. O símbolo era, de fato, numérico. Era, de fato, uma representação do número seis. Mas nada tinha a ver com jejum de gols. Era uma referência ao aniversário da filha do jogador, seis aninhos, a quem o gol era dedicado.

4. Nenhum comentarista vai retornar ao que disse, no calor da imagem. Nem é o caso. Todavia, ele se torna emblemático. O que, de fato, significa o gesto do jogador? Melhor: qual o critério para definirmos o gesto do jogador? E, aí, vale lembrar: se o que queremos saber é o que o jogador quis dizer com seu gesto, só resta uma única e possível alternativa: perguntar a ele. Isso, em termos de método. Em termos de critério de verificação, só nos resta comparar nossa interpretação com a interpretação intencional do próprio jogador. Se elas não "batem" - erramos.

5. O que me faz retornar ao "eterno" problema da interpretação bíblica. Como eu devo me comportar diante do texto? Em termos de método, como interpretá-lo? E, em termos de critério crítico, como saber se interpretei direito?

6. Não se pode avançar nessas duas questões, todavia, sem, antes, estabelecer a situação na qual elas se desenvolverão - e essa situação sou eu, leitor, quem a decide. E só há três situações possíveis: estética, política, heurística.

7. Voltemos a Luís Fabiano. Esteticamente, eu, leitor, posso me apropriar do gesto do jogador e fazer dele o que eu quiser. Posso fazer o seguinte: não se trata de seis, isto é, cinco mais um, mas de cinqüenta e um, isto é, não 5 + 1 = 6, mas 5 e 1 = 51, e dizer que fazer gols é uma "boa idéia". Enquanto método, trata-se tão somente de projeção subjetiva. Quero que seja 51, é 51. Como critério crítico, para eu saber se é certo dizer que o significa das mãos expostas de Luís Fabiano é 51 é perguntar a mim, a meu gosto, se é 51. E direi: É. Pronto - é.

8. Outra situação - outra pragmática, é a política. Eu posso decidir pegar essa minha interpretação estética - 51 - e fazer dela um comercial para aquela famosa cachaça. Direi, para fazer disso comercial de TV, que Luís Fabiano é movido a 51, a boas idéias... e por aí vai. Ou posso, ainda, dizer qualquer outra coisa que "combine" com a imagem, e usá-la para influenciar outras pessoas (chave do propriamente político). Nesse caso, o método é instrumentalizar a imagem, a rigor, sua interpretação por mim para isso "trabalhada", na direção de obter, com isso, meus resultados desejados. O critério, os próprios resultados desejados.

9. Agora, outra coisa completamnte diferente é a situação heurística. Se meu filho de seis anos me pergunta: pai, o que o Luís Fabiano fez?, eu só posso responder o que Luís Fabiano fez, não o que eu gosto de pensar que ele tenha feito, muito menos usar Luís Fabiano para fazer meu filho parar de fazer xixi na cama... O que Luís Fabiano fez, só a intenção de Luís Fabiano revela, de modo que o gesto se torna traduzível apenas e tão somente sob a chave intencional do cérebro que gerou os gestos de dedos e mãos. E, ele disse, não foi nada em relação a jejuns de jogos. Era a filha, gente! Era a filha.

10. Aí vem o povo da interpretação falar que está morto o autor. Ah, é?, eu reajo. Então, adeus, gente boa, que vou fazer outra coisa. Não me interessa leitura estética de textos bíblicos. Não me interessa leitura política de textos bíblicos. Não me interessa tratar o texto como arte - porque ele nunca foi arte! Não me interessa tratar o texto como instrumento para "educar" pessoas - conquanto ele possa ser usado para uma e outra coisa. Mas falo de meu interesse, e meu interesse é, então, saber o que cada autor quis dizer com o que disse. A situação em que opero é heurística. Isso resolve a questão. Conquanto ponha outras...

11. Mas mataram os autores bíblicos. Ora, cá entre nós, se os mataram, quem é que fala nos textos sobre os textos que eles escreveram? Para que ler essa tralha toda? Se é arte pela arte, tem arte melhor - indubitavelmente. Se é política, às favas com a política e os políticos todos. Mas se a questão é: o que raios quis dizer Is 4,2-6, então só há um jeito de responder a questão: descobrir o que quem escreveu Is 4,2-6 quis dizer. Como? Eis aí a questão. O resto, para mim, de absoluto desinteresse.

12. Eu só lamento que os critérios estejam tão surrados. Só lamento que a questão da intentio auctoris tenha sido jogada para debaixo do tapete por meio de estratégias meramente políticas. Dá-se a coisa como que resolvida, quando, a rigor, ela sequer foi enfrentada com seriedade. Contornam-se os problemas com práticas "interpretativas" não suficientemente discutidas, com vitrines exegéticas, em que as críticas são contornadas retoricamente: ué?, mas você ainda acredita em intenção do autor? E eu respondo, cá com meus botões: ué?, e você não? Não me parece ser eu a dever satisfações... E, deixem-me provocar, é a filha, gente, é a filha...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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