sexta-feira, 30 de abril de 2010

(2010/352) Gasparzinho na veia


1. Paulo teve um ataque apoplético. Os camaradas de Corinto cismavam que o corpo era desnecessário, que, após a morte, a alma, fantasmática, voejaria faceira para os Campos Elísios, enquanto o corpo, fétido, apodreceria sob a terra, ou, que diferença faria?, seria comido pelos abutres. Judeu, Paulo foi tomado da apoplexia que acomete os ortodoxos, quando ouvem heresias - e vociferou apologéticas garantias de que, não senhores, o corpo era condição sine qua non para a sanidade e a validade da fé! Sem o corpo, sem a ressurreição, tudo era vão - a cruz, a salvação, o perdão, porque, sem o corpo, não haveria amanhã...

2. Mas não aprendemos muita coisa. Paulo podia ficar pelado, plantar bananeira e dar com a babeça no chão que, ainda assim, não o ouviríamos. Já havíamos posto Gasparzinho até em Gênesis! À fórmula semita - nefesh hayah - já havíamos agregado o sentido platônico-fantasático de "alma vivente", conquanto o sentido deva ser "garganta viva", como a garganta da corça do Sl 42, garganta a gritar de sede... Enquanto o sentido semita do mito seja um corpo vivo, um ser-vivo, um corpo que respira, a gente cristã já o lê pela cartilha de Platão: o corpo é uma casca podre com um fantasma dentro - a alma...

3. Corinto já estava estragada para a fé semita, já estava por demais familiar das concepções anímico-dualistas. Homens e mulheres são cascas inúteis, com um espectro transparente morando dentre dele. O fantasma que habita o corpo é a verdadeira pessoa. O corpo, não. O corpo é supérfluo. Só parece ser necessário, aqui e agora, porque a alma caiu vítima da vida, da encarnação. Mas, no dia em que ela se libertar, no dia em que a vida acabar, aleluia!, Garparzinho vai voar para o céu.

4. O ataque apoplético do apóstolo revela que são inúteis as cenas de desespero ortodoxo - o Cristianismo nunca mais seria semita, e a idéia de Gasparzinho encontraria sua definitiva vitória na cabeça teológica de cada cristão, que, doravante, lutará contra o corpo, cuidando que o seu verdadeiro ser seja um trasgo celeste...

5. Esse enredo re-encena-se diante de nossos olhos. O conhecimento, metaforicamente falando, é semita. O conhecimento humano é cria direta do conhecimento celular, biológico, animal. O conhecimento é a capacidade de a vida, de o ser-vivo, computar o meio, computar a si, sustentar-se, em vida, no ecossistema que o recebe. Conhecimento é a capacidade de a vida instalar-se, sobreviver, evoluir. Isso significa que conhecimento é o diálogo crítico entre o ser vivo e o meio, entre a vida e o real. Conhecimento não é imaginação, não é sonho, não é delírio, não é fantasia, não é arte...

6. Todavia, o mesmo Platão das almas fantasmáticas cuidou informar ao Ocidente que o conhecimento é um atributo do fantasma que habita os corpos humanos. Gasparzinho sabe. Saber é atributo de Gasparzinho. Mais do que isso: nada há que de fato contribua, na terra, para o saber. Gasparzinho está a mercê da memória providencial, da graça divina, ou há de permanecer um idiota, porque nada que seja não-material é veículo de conhecimento. O corpo é estorvo. A matéria, obstáculo. Só a alma fantasmática pode aprender - e do que seja imaterial, ideal, essencial, fantasmático...

7. Ah, que coisa! Os últimos séculos, pós-protestantes, foram a pouco e pouco, descuidando da alma, e aumentando a concentração de atenção no corpo. A isso chamou-se, tabém, de Empirismo. Logo, o Ocidente descobriu a matéria, a ciência, a pesquisa, a heurística. Decidiu-se distinguir entre mito e história, entre verdadede e erro, entre conhecimento e ilusão. Decidiu-se que haveria de se dialogar com... o real. O Ocidente cristão foi se tornando, pouco a pouco, semita. A ciência é semita. Não considera a hipótese de uma alma: é o corpo, vivo, quem pensa, quem conhece. E conhecimento, aí, é justamente o diálogo com o real, de onde o corpo extrai a sua vida, a sua manutenção viva. Conhecimento é função crítica da exitência biológica.

8. No entanto, milênios de platonismo e cristianismo provocam reações. A hermenêutica e a epistemologia não-fundacionais são como que "birras" reacionárias. E agora, diante delas, diante daqueles que dissolvem o conhecimento e o fazem semelhante ao gosto, à opinião, ao mero "consenso", a atributos do Gasparzinho moderno - a linguagem - eu me comporto como Paulo, flagrado em ataque apoplético. Não se trata da defesa da mesma coisa, mas do mesmo tipo de defesa. Acredito que o corpo, e não a alma, sejam agentes do conhecimento, e admito que a matéria, o real, seja, ao mesmo tempo ecossitema e objeto de conhecimento. Conhecimento, para mim, não é gosto, nem opinião, é diálogo critico com o real.

9. Mas há quem pense que não. Há quem pense que o conhecimento é um equívoco cognitivo, uma neurose, um engano da mente, e que, no fundo, o conhecimento humano é como a arte, como se a relação do sujeito com o objeto de arte fosse a mesma coisa que a relação do sujeito com esse mesmo objeto sob problematização heurística. Se o neoplatonismo epistemológico não pode assumir a alma, pode, por outro lado, dissolver o real ou, ao menos, construir a retórica da impossibilidade da relação real, concreta, viva, da vida com o real e material, convertendo a impressão humana dessa realação em mera idiossincrasia.

10. Não sei se haverá remédio para essa crise não-fundacional, não-material. Os não-fundacionais creram tanto, um dia, em Platão que, agora que descobriram que a metafísica era um mito, deixaram de crer não no sistema epistemológico platônico que gerava o conhecimento tido por divino, mas no próprio conhecimento. No fundo, para eles, ou o conhecimento é divino, ou não há conhecimento. Como descobriram que o homem é, afinal, mortal, logo, não-divino, e que seu conhecimento seria unicamente humano, logo, não divino, concluíram qe, então, o conhecimento humano, não sendo divino, não é verdadeiro conhecimento, é quimera... Exemplo crasso de como se pode sair de um paradigma pela metade... Ela já dura, pelo menos, no Ocidente, há 2.500 anos. No fundo, trata-se de decidir-se entre a vida concreta, biológica, telúrica, terrestre, e uma existência imaterial, noológica, fantasmátca, nao-situada, não ecossistêmica. Trata-se da supressão do conhecimento, da transformação do conhecimento em mera brincadeira de deslumbrados. Platão também suprimiu o conhecimento, substituindo-o pela inculcação da Norma política do governante da Cidade Bela. A supressão do conhecimento é, afinal, um gesto político - e só resta descobrir se é um gesto político de defesa, ou de conquista.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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