sábado, 19 de setembro de 2009

(2009/481) Haroldo lançará "Inefável e Sem Forma"


1. Haroldo já pôs no prelo Inefável e Sem Forma, livro com textos sobre o monoteísmo e as relações históricas de Israel/Judá com "seu" - e "nosso" - Deus. Pediu-me que redigisse uma Apresentação, que redigi com prazer. O livro, vocês terão de esperar um pouco. A Apresentação, ei-la:

Apresentação


A pergunta pelas origens do monoteísmo “bíblico” efervesce no copo da pesquisa. O pesquisador é sempre alguém tomado por problemas estomacais – e haja anti-ácidos. É porque a “tradição” nem sempre cozinha bem os alimentos, e, quando são digeridos, o efeito costuma ser, na pesquisa, azia e má digestão. Haroldo Reimer começa assim seu livro – enfiando um desconfortável endoscópio na goela da gente, obrigando-nos a sentir o travo na garganta. “As coisas não foram bem como parece”, é o que diz o capítulo “Da Diversidade à Singularidade – aspectos da história da pesquisa sobre o monoteísmo hebraico”. Trata-se de um levantamento da situação da pesquisa em torno do tema da origem do monoteísmo ocidental.


Haroldo revela-nos que há uma pressão para datar o fenômeno cada vez mais próximo de nós. De um monoteísmo original, passou-se para um monoteísmo mosaico, daí, para um monoteísmo profético – dito (escandalosamente, a meu ver) ético (como a supressão de liberdades pode – hoje – de algum modo ser aproximado da Ética?) –, sustentando-se, ainda, aí, a despeito de uma ainda maior pressão para uma datação pós-exílica do fenômeno.


No que tange à “tradição”, essa talvez tenha sido a maior batalha do século XX. Situar a origem do monoteísmo entre os profetas “éticos” do século IX e VIII faz dele um “produto (weberianamente) bom”. Por outro lado, datá-lo no pós-exílio, depois que os sacerdotes judaítas silenciaram a profecia e usurparam o oráculo (Ml 2,7), corresponde a fazer do monoteísmo um fenômeno eminentemente – weberianamente – “mau”. A “Lei” – e não se pode dizer que o Protestantismo tenha lá muita simpatia pela “Lei” –, não restou a ela senão ser situada num Horebe mítico do século V, pra lá ou pra cá. Moisés chega a ser um “epifenômeno”... Mas o monoteísmo “resiste”. É “profético! É “ético” – vai ver, nem uma coisa nem outra...


Todavia – deixemos a pesquisa cavar o solo antigo. Mais cedo ou mais tarde, “saberemos” se o monoteísmo era – mesmo – profético ou se os profetas eram – mesmo – éticos... Com efeito, é difícil explicar o monoteísmo como fenômeno “persa”, isto é, não-judeu, basicamente, quando, se persa, apenas os judeus teriam sido “atingidos” por ele, mas não as demais províncias imperiais, permeadas de politeísmo. Talvez esse constrangimento seja tributário do fato de que se decidiu saber muito pouco sobre a Pérsia, comparativamente a Babilônia, Egito, Assíria e Grécia. É, reconheçamos, um constrangimento esse monoteísmo “pós-exílico” – de modo que ainda há muitas razões não meramente “políticas” para a investigação do plausível envolvimento de profetas. Mario Liverani não acaba de contar para nós a história das Reformas de Ezequias e de Josias de um modo muito pouco, quase nada, diferente daquele com que, há mais de um século, nos contava Ernest Renan? Ele até o cita... Sejamos, pois, pacientes. Temos tempo...


Seja como for, Yahweh, deus “glutão”, saiu a comer a identidade de todos à sua volta. Haroldo chama a isso, mais austeramente, de “síntese monoteísta”, quando compõe o capítulo “Monoteísmo e Identidade”. Durante a “era-eixo”, como diz Haroldo, israelitas/judeus teceram sua “narrativa”. À medida que Yahweh ia tornando-se mais e mais “central”, afastando, assim, concorrentes e rivais – inclusive sua consorte! –, a “imagem” divina ia sendo remodelada, pela assimilação de habilidades e traços dos deuses e das deusas vencidas. Como aquela que Jesus, um dia, conta-se, manda ao mar, montando porcos, Yahweh é Multidão. Não é um, é muitos. Mas num só.


Não fosse a (inadequada) prática “bíblica” de se substituírem os “nomes” divinos por designativos não-nominais, Ex 6,2-3 ajudaria ao leitor a flagrar uma cena reveladora – Yahweh engolindo ´ël šaDDäy. Mas as versões transformam Yahweh em “Senhor”, e ´ël šaDDäy, em “Todo Poderoso”. Pobre leitor. Nem Yahweh é “Senhor” nem ´ël šaDDäy é “Todo Poderoso”. Ambos são nomes, presumivelmente de divindades diferentes, que a tradição – sacerdotal, apostaria – fundirá, porque tem (outra aposta) em mira a cooptação do “herói” (nesse caso, não-javista) Abraão. Essa é apenas uma cena de flagrante – mas Yahweh já havia sido assimilado, por superposição, seja a El, seja a Baal, seja a qualquer outra divindade popular – rival.


Ora, ora – se não é difícil para um deus tomar de outros a identidade, as funções, por que haveremos de nos surpreender que, entretecido nessas histórias – nessas confissões! – se possa ler de um “povo” tomando de outros também as terras, quando não já a própria vida? Tudo isso são histórias muito reveladoras, também de nós mesmos, de nosso modo ocidental de fazer “religião”. A bocarra escancarada da fé tem fome de tudo – nada lhe escapa. Nem ninguém.


Em “Inefável e sem Forma”, Haroldo dedica-se a dedilhar a harpa da história do aniconismo bíblico. Islamismo e Protestantismo – ao último, Haroldo se refere como “ala radical e iconoclasta da Reforma do século XVI” – aceitam a interdição da “imagem” cúltica promovida pelos “judeus”. Ainda estamos na fase de buscar as razões pelas quais os judaítas estabeleceram – para si – o aniconismo, depois de séculos de convívio com esculturas cúlticas (Othmar Keel). Naturalmente que aquelas duas “tradições” trataram de dar ao processo uma interpretação não apenas positiva, mas – mesmo – divinamente fundamentada. Talvez tenha havido razões político-econômicas para a supressão de “imagens” em Judá – as mesmas que, a partir do século VI, redundaram na supressão de toda “alternativa” de mediação do “sagrado” que rivalizasse com Jerusalém – da profecia à invocação do “nome” da divindade. Todavia, a legitimação retórica do processo fez dele o reflexo de escrúpulos da própria divindade em deixar-se flagrar na sua nudez corpórea (racionalização teológico-filosófica, espiritualidade mística). Aliás, os efeitos dessa interdição parece terem sido muito bem acomodamos por uma cada vez mais abstrata teologia/filosofia ocidental. O que “assusta” não é tanto que muçulmanos e protestantes tenham mantido a interdição da forma – o que “assusta” é que a máxima expressão cristã tenha preservado a mediação da celem e da Dümût – “estátua” e “figura” [“imagem e forma”] – por (quase) dois milênios inteiros.


É natural que o olhar pousado sobre as “estátuas” dos deuses – evidentemente “simbólicas” – instigue a pergunta mais “ontológica” por “A Corporeidade de Deus”, tema alguma coisa entre “escandaloso” e “evidente”. Escandaloso porque fere susceptibilidades muito antigas e eminentes – evidente, porque Judaísmo e Cristianismo jamais desvencilharam-se do traçado antropomórfico com que Yahweh – e, depois, para estes, a “Trindade” – “três pessoas” – foi desenhado.


Aqui entram questões relativas ao modo como, na tradição que nos toca, “Deus” é “imaginado” (“concebido”). Homem, primeiramente, que, despojado de sua parceira – um “Deus”, coitado, sem nome e sem “mulher” – “acaba sendo construído também com funções femininas” (cioso do tabu em que toca, Haroldo, imediatamente, acrescenta: “sem, contudo, perder sua identidade masculina”). E isso porque se trata de uma tradição teológico-filosófica. Teria sido interessante – mas, certamente, teria sido “outra coisa” – ver os Cristianismos originários desenvolverem-se não concentricamente à Europa “greco-romana”, mas, afastando-se daí, fincando raízes em solo preto africano ou no solo dos milhões de deuses hindus, onde corpos de elefantes e de vacas são elevados às alturas celestes, e onde a própria sexualidade do corpo, literalmente, é liturgia (Khajuraho). Considerar esse if, materialmente irrecuperável, ajuda-nos, contudo, a situar a questão do tema da corporeidade de “Deus” – não é tanto de “Deus” que se fala, mas da própria cultura religiosa que se vai enroscando, como cobra, no próprio tema, moldando-o em razão de si, e a si, em razão do tema assim moldado. A corporeidade do Outro acaba tratando da corporeidade de nós mesmos... Não nos esqueçamos de que a questão fundamental era se os pretos tinham... alma... Que tinham corpo, sangue e lágrimas revelavam...


Falando em cobras e almas... Haroldo fecha sua série de textos com “A Serpente e o Monoteísmo”. Haroldo, aqui, firma o pé no chão, encara-nos no fundo da tradição, e assenta a pedra iconoclasta, assim, em itálico mesmo: “a serpente, como elemento catalisador da simbólica do mal, é uma construção relativamente tardia na história da religião do Israel antigo”. Ela, ele diz, é pós-exílica. Cá, no fundo do auditório, grito eu: e é mesmo, Haroldo!


Nenhuma relação entre ela, essa serpente de Gn 3, e Nehushtan, a serpente de bronze que Moisés “teria” feito – por ordem de Yahweh! Nehushtan torna-se tão íntima de Yahweh que voeja sobre ele – os serafins –, protegendo-o de indesejáveis intromissões. Que vá ser destruída, isso nada tem a dizer sobre sua relação com Yahweh – são coisas que Yahweh tem que aceitar, porque é próprio dos deuses moldarem-se à imagem de seus manipuladores. Já a serpente do jardim, desde o início fazem dela não apenas – como Haroldo diz – “símbolo da ‘demonização’ do mal [eu diria “mau”] e das outras divindades” –, mas, já, inimiga de Deus. Sim – depois de ter-se assenhoreado das prerrogativas de todos os rivais, Yahweh, agora, encerra-os, a todos, na condenação da serpente má. Má a serpente como maus são Adão e Eva, e tanto, que alguns capítulos adiante, há de se flagrar Yahweh, tomado de cólera, a protestar contra a maldade do coração desse homem desde o nascimento, e tanta, que decide pôr fim à sua própria criação... Há, decerto, aí, nesses textos – que Haroldo diz serem míticos, retroprojeções e carregados de “antropologia negativa” – uma carga performativa que marca a História do(s) Cristianismo(s), cujo olhar, quando não consciente da condição absurda de seu pathos, descerra-se sobre os homens e mulheres como fulminante juízo e maldição. E a culpa, dizemos, é deles – da serpente, não de Deus, e dos homens e das mulheres. Culpa. Carne de cobra no corpo da gente... A rigor, coisa sacerdotal, como não cansou de nos berrar, inutilmente, aos ouvidos, um Nietzsche às portas da loucura...


Haroldo convida-nos a uma viagem no tempo. Pode-se fazer a viagem de dois modos. De um lado, sentando-se ao lado dos narradores, assumindo seu “projeto”. De outro, postando-se à segura distância, criticamente. Quando eu mesmo faço a viagem, procuro descer até o vale com toda proteção possível. É que, conforme Richard Palmer gostou de dizer, houve duas correntes “hermenêuticas” na Europa do século passado – uma, mais simbólica, digamos assim mais “apaixonada” pela tradição, pelo que opera, por isso, nos interstícios dela, como quem, num pomar, colhe frutas maduras e suculentas, e deixa lá as bichadas de inseto, as verdes, as passadas, as bicadas de passarinho. A outra corrente, por sua vez, iconoclasta por natureza, enfrenta a viagem por meio da “crítica das ideologias”. Minha proteção pessoal é justamente essa – a crítica.


Não posso, falo de mim, condescender com a tradição. Nem que seja a tradição de “Deus” – e por isso mesmo! Nunca se teria dito algo tão lúcido quanto o disse o Jó, de Jack Miles, em Deus – uma biografia: “ouvira falar de ti, / mas agora que meus olhos te viram, / estremeço de pena do barro mortal”. A despeito de, em “sua” história, “Deus” ter perdido pouco a pouco o corpo, isso em nada prejudicou “sua” extraordinária capacidade de oprimir “suas” criaturas. Ora, na altura dos acontecimentos, sabemos do que se trata em tudo isso – de discursos manipulados por homens e por mulheres, discursos sempre heterônomos, seja “ópio”, seja “cafeína”, seja Lexotan®, seja Prozac®, que “Deus”, se há algo mesmo – Deus, Deuses, Deusa, Deusas, se o próprio Lá e o Cá são “divinos” – isso é um abismo insondável a nos fitar com o olho da Impossibilidade.


Quero dizer com isso que se pode recorrer à estratégia de purgar “Deus” de suas maldades, torná-lo definitivamente “bom”, mantendo-se, assim, a estratégia ocidental de construção de sentido “ontológico” para a vida humana – os filósofos e os teólogos podem ter as carnes ruídas pelo Vazio: o povo, não... É mais ou menos o que nos pede Edgar Morin: inventarmos um novo modo de lidarmos com nossos deuses, o que implica em reconhecermos que ele é uma espécie de vapor de palavras, névoa de metáforas – ser de espírito...


Alternativamente, pode-se pensar de modo radicalmente científico-humanista, e, assim, lidar de modo “moderno” com nossa condição humana. Por que nossos espíritos construíram as imagens que construíram, imagens também de “Deus”, que se legitimam em nos salvar das próprias armadilhas que elas mesmas nos impuseram? Chegou o tempo – não!, estamos atrasados! – de uma autocompreensão radicalmente telúrica da condição telúrica do Homo sapiens, de encarar os mitos como mitos, os deuses e as deusas, como projeções. A “Teologia” não o quer. Ainda pensa ser possível “controlar” – para o bem, ela alega – sua criatura. Se os homens não o fizeram até hoje, é porque não eram suficientemente bons... Todavia, eu tenho medo. Medo de que esse breve hiato de República termine, e os deuses e as deusas voltem a nos assombrar, e, nos extremos, a cozer nossas carnes. Porque, a “alma” de Deus, quando encarna no corpo dos homens, eventualmente faz deles os mais terríveis demônios.


Meu amigo Haroldo nos põe coisas muito relevantes sobre a mesa de trabalho – e sobre o colo, sentados no sofá de casa. Não são questões apenas acadêmicas – também o são! São, no entanto, coisas também muito íntimas nossas. É, de fato, convenhamos, constrangedor ver nossas tripas expostas, assim, tão impudicamente, aos olhos do mundo. E são mesmo nossas, porque em tudo isso – Haroldo há de concordar – é mais de nós do que de “Deus” que se trata. É por isso que não se pode cansar da tarefa – porque não podemos cansar de nós. Em algum lugar de “Deus” está perdida nossa identidade humana. Prometeus modernos, havemos que roubar dele esse nosso fogo, sem esquecer, contudo, que o preço é – ao menos no mito – o devorar lento e diário de seu fígado... que, contudo, sempre se refaz, para um novo dia...


Osvaldo Luiz Ribeiro

Mesquita, 19 de setembro de 2009


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