sábado, 8 de agosto de 2009

(2009/417) Tive não...


1. Pai? Tive não. Sei que é isso não. Ouvi falar. Mas não sei o que é. Vi que outros tiveram. Mas não posso contar a mim mesmo o que é. Sou sim. De dois. Mas não sei o que é ter um. Meus dois devem saber, eu acho. Sei lá se sabem, que vai ver, não tendo tido um meu, não terei sabido nem sei como é ser um. Sim, criei dois, mas será que fiz direito? Eles dizem que sim, mas, será que diriam que não?

2. Se sinto falta? Às vezes. Mas é mais por causa do que você acaba ouvindo e vendo. Na televisão, pai é uma coisa encantada. Não vê o dia de amanhã? Então... No Natal, você não gostaria que fosse verdade aquela história mentiroooosa, mentirosa, de Papai Noel?, só pra voltar à infância, às músicas do Natal da Mônica, enquanto chove lá fora e a água corre como rio pela Avenida São Paulo? Então. O pai da televisão é mito assim, como Papai Noel e o coelho da páscoa - a gente sempre queria ter tido um.

3. Mas, às vezes, olho para filhos machos, criados por pais de verdade, que são machos todos, testosterona nos poros, as mulheres lhes cabem na boca como pedaços de alcatra, as mulheres lhes são genitais com pernas, e vão dizendo assim, com a maior naturalidade, como se fossem bichos - é, e não são? Aí, quando vejo isso, e vejo no que corria o risco de ser, até acho bom não ter sabido o que é ter pai. Que se há de ter pudor até no afogar-se de libido, ora...

4. Uma vez, aos quinze anos, ele apareceu. Do nada. Ficou lá em casa um tempo e, como apareceu do nada, do nada sumiu de novo. Depois morreu. Pelo menos disseram. Um dia, na cozinha da vovó, ele, à mesa, mamãe, à pia, meu primo lhe faz saber que uma menina, Rita, me dera um cartão de Natal. Era uma paquera da parte dela, certamente, mas eu era tonto demais para saber lidar com a situação, a não ser sentir o coração bater como pistão de fusca.

5. Tio, Osvaldo ganhou um cartão, ó... Aquele que teria sido o pai que não tive pegou o cartão e disse aquelas palavras que me asustaram: "já comeu?"... Foi bom que tivesse ido embora. Ou eu me tornaria no projeto de macho dos pais-machos, ou eu e ele nos tornaríamos estranhos. Como é o que somos, foi bom.

6. Bom até porque posso imaginar como poderia ter sido... Mas não foi. O que foi é o que foi, e pronto. E, ademais, fosse o que tivesse sido, agora sou dono de mim... Quer dizer, meio dono, porque o passado, mesmo soterrado no poço das memórias que se quer esquecer, arranha a carne da gente. Quanto da depressão da alma não é o fundo do poço reclamando lembrança, assustando a vida da gente como asombração de morto?

7. Fingi que soterrei meu passado. Lembro mesmo de coisas só a partir dos cinco ou seis anos. Até essa época, eu tinha tido. Foi nessa época que a mãe pegou eu e meus três irmãos e meio que foi embora com a gente para a casa da vovó e do vovô. É curioso que lembro da primeira cena da chegada na casa da vovó, e de nada de concreto, e raríssimas imagens dos dias, meses, anos, antes disso... O que terá havido que escondi no fundo da alma com todas as forças, e tanto, que nem eu consigo encontrar?

8. Muito em mim é fruto dessa pequena tragédia. Não sei dizer ao certo se ela é mais paralisante pelo que foi depois daquele dia, ou se, antes, justamente pelo que eram meus dias antes dele... Será que aquela cena do cartão na cozinha de vovó foi um flash do que foram aqueles lustros, e do que deixei pra trás, por força de mamãe ter tomado um surto de lucidez, e fugido?

9. Tive não, viu? E isso é bom. Porque ouvi de alguma boca que é preciso não ser lá muito certo da cabeça pra se conseguir sair da trilha da tradição e criar o novo... Quando olho pra teologia que prego, bem, talvez eu deva essa ousadia, essa rebeldia e essa absoluta falta de "educação "teológica justamente à falta dele...

10. Mas talvez trocasse tudo pelo colo...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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