quinta-feira, 5 de março de 2009

(2009/058) Voltando a von Sinner


1. Na disciplina Tópicos Especiais em Teologia, disciplina de conteúdo aberto que ministro da Faculdade Batista do Rio de Janeiro, um dos alunos propôs, e a turma votou, aprovando, que discutíssemos a questão do estatuto epistemológico da Teologia, em face de sua absorção, pelo MEC, no Sistema Federal de Ensino. Não era minha idéia, e é bem verdade que a proposta tenha sido até certo ponto influenciada pela leitura que o aluno faz da ouviroevento, onde tenho discutido um tanto visceralmente a questão, o que deve me custar alguns aborrecimentos mais cedo ou mais tarde, mas, ao cabo, até que a coisa está saindo melhor do que imaginei.

2. Durante o semestre, analisaremos, lendo e discutindo parágrafo a parágrafo, quase que psicanaliticamente, os três artigos da Estudos Teológicos 47 (de von Sinner, Zabatiero e Mueller), para os quais já lavrei críticas (aqui), bem como um artigo de minha lavra, nervoso e "impaciente" (conforme me advertiu minha amiga Mary Esperandio), Teologia no Divã. Seguiremos essa ordem.

3. Começamos com von Sinner, o que me permitiu reler ("reler de novo") o artigo. O ambiente tem me permitido aprofundar a perspectiva de leitura, e, hoje, percebi um "padrão" que não havia identificado nas leituras anteriores. É desse "padrão" que quero falar nesse post, bem como retificar minha opinião de que, ao contrário do que postula von Sinner, a teologia "que aí está" - e a que ele postula - não têm a mínima possibilidade de ser considerada "ciência".

4. Chamo a atenção do leitor para a seção "Uma theologia ludens". Desde aí, anoto algumas afirmações de von Sinner. Fala-se da "teologia como jogo", conquanto não "uma brincadeira", mas, a despeito disso, algo que permite lidar com a teologia com base no "humor". E as razões seriam as seguintes.

4.1 "O que dizemos sobre a fé não é idêntico a ela. A teologia procura, isto sim, dar-lhe expressão adequada em determinado contexto". Nos termos da declaração, há uma de caráter geral, ontológica e absoluta, uma espécie de depósito primário. Sob ela, a seu serviço, a "teologia", cuja função seria dar a essa "expressão adequada em determinado contexto". Finalmente, há, logicamente, o "contexto". Assim, cabe à teologia servir de intermediária (disponibilizadora) dos conteúdos da fundamental na forma de dispensações circunstanciais, geograficamente adequadas. Assim, distinguem-se duas fés - a fundamental, ontológica, fé-em-si, e aquela tradução histórica, dispensada pela mediadora - a teologia -, fé que é função da adequação do absoluto à relatividade histórico-determinada do "lugar" em que ela, a , se manifesta. Não se falou de "gente", aí. Fala-se de "contexto". Com boa-vontade, pode-se "inferir" que esse contexto refira-se a "nós", os que dizem "o que dizemos sobre a fé".

4.2 "O estudo da teologia é um laboratório (...) onde se pode explorar, sem ter que decidir tudo de imediato, quais seriam as melhores palavras para dar expressão àquilo que não tem palavras, ultimamente – mas que representa “a” Palavra". De novo - e começa a se materializar um padrão -, fala-se do Absoluto ("aquilo que não tem palavras, ultimamente", "'a' Palavra"). Esse Absoluto é Indizível "em-si", mas a teologia, seu estudo, transforma-se na escolha das "melhores palavras para dar expressão àquilo que não tem palavras". Ora, isso que é Indizível, mas, agora, é dito, é dito "aqui e agora" - e eis, de novo, o topos histórico-circunstancial para o qual trabalha a teologia, nessa sua faina de intermediar o não-intermediável. Mais uma vez, não se fala de pessoas - só de palavras que se expressam...

4.3 Pouco depois desse ponto, von Sinner recorre à "Confissão de Augsburgo", e cita-a: "'para conseguirmos essa fé, instituiu Deus o ofício da pregação, dando-nos o evangelho e os sacramentos, pelos quais, como por meios, dá o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o evangelho'". Apliquemos o "padrão", conforme os parágrafos 4.1 e 4.2 acima. Busquemos o Absoluto, a intermediação e o "lugar". Ora, o Absoluto está muito explícito: "Deus". Pode-se, sob certa medida, relacionar a esse Deus a referência à "fé" ("conseguirmos essa fé") e ao "Espírito Santo" ("o Espírito Santo, que opera a fé"). A intermediação é dada de modo duplo - materialmente, pelo "evangelho" e pelos "sacramentos", mas, a rigor, pelo "Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando lhe apraz". Finalmente, resta identificar o "lugar" onde essa fé, absoluta, torna-se histórico-circunstancial - e eis que esse lugar coincide com "aqueles que ouvem evangelho", porque é neles, "onde e quando lhe apraz" que "o Espírito Santo" "opera a fé". Isto é: o Espírito Santo (= teologia) opera a fé (de um lado, a dimensão dada como absoluta e ontológica e, de outra, a expressão concreta e histórica) "naqueles que ouvem o evangelho" (o topos de operação da teologia e do Espírito Santo).

5. Ora, o seguimento do próprio padrão de raciocínio que o artigo impõe sugere que "aqueles que ouvem o evangelho" têm, nele, no padrão, o papel de "lugar" - não são "pessoas crítico-reflexivas", mas, meramente um "espaço" de atualização da . A tarefa "crítica" - a rigor, "apologética", cabe à teologia (de algum modo ela tem a capacidade, de resto não dada a outrem, de ouvir o inaudível, ver o invisível, exprimir o inexprimível e, assim, alguma coisa entre magia e performance, "construir", naquele lugar citado, a (sua!) expressão histórica daquela fé, na verdade, a-histórica. Não, nos termos das declarações citadas, não cabe a "aqueles que ouvem o evangelho" refletir ou atualizar a fé - isso é função da teologia (4.1 e 4.2) e do Espírito Santo, por meio do evangelho e dos sacramentos (4.3). O que antes foram ovelhas, agora é apenas um pasto... Nela, constroem-se cabanas: Sucot...

6. Não vejo maneira de eu encontrar "humor" nessa forma de conceber a expressão eclesiástica - salvo se, durante toda a seção, von Sinner está sendo, de forma muito sutil, extremamente sarcástico. Mas não é a razão de eu ter atrasado minha janta - mas é essa: no contexto de uma discussão (esse é o objetivo do artigo) de decidir-se se a teologia é ou não é ciência, e sabendo que von Sinner dirá que sim, essa seção adquire uma aparência esdrúxula - porque, a despeito do "humor" que possa suscitar o "padrão" (sinneriano?, luterano?, Tillich, por exemplo, não criticaria a fórmula - "Deus é símbolo para Deus", conquanto até o "lugar" esteja ausente em sua fórmula), ela, a fórmula, é científico-epistemologicamente improcedente, inadequada e incoveniente para alguma "matéria" que postule a classificação de "ciência". Não apenas pela pressuposição do "absoluto indizível", mas, sobretudo, pelo caráter não-subjetivo, não-crítico, daquilo em que se transformaram, segundo o "padrão", "aqueles que ouvem o evangelho". Bons ouvidos para a fé são definitivamente imprestáveis para a ciência. E vice-versa.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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