domingo, 30 de novembro de 2008

(2008/78) Entre o fenômeno e o nome


1. Haroldo, leio diariamente o blog do Luís Nassif, dentre outros, que substituíram, para mim, jornais e revistas, bem como, em grande parte, a TV (a mídia brasileira está inqualificável, no pior sentido do termo, e não perco mais tempo com ela). Hoje, domingo, um post interessante, em que achei uma descrição muito boa para usar em nossa conversa sobre os termos "tradição" e "Tradição". Não se prenda ao conteúdo do post, mas ao argumento final de Nassif:

1.1 "Em sua coluna de hoje, na Folha, Clóvis Rossi liquida com qualquer pretensão de união dos BRICs (os quatro grandes emergentes). // A razão? É que todos são feios, sujos e malvados: // Razão 1 - Outro dia, (Jim) O'Neill (sujeito que apenas criou a expressão BRICs) admitiu ter se equivocado ao fazer outra previsão, a de que haveria o famoso "decoupling" (descasamento) entre os países ricos e os emergentes na crise global. Ora, se foi incapaz de enxergar o que aconteceria meses à frente, quem pode levar a sério uma previsão sua feita para 20 anos à frente, já que o termo Bric foi cunhado em 2001? É uma imensa bobagem achar que há alguma comunhão entre os quatro países só porque uma entidade financeira com interesses em todos eles viu numa bola de cristal embaçada um grande futuro para o grupo. // Em vez de levar em conta que O’Neill batizou o fenômeno, Rossi considera que, batizando-o, O’Neil na verdade criou o fenômeno. E, como ele errou sobre o descolamento, logo o fenômeno não existe" (Luís NASSIF, Feios, Sujos e Malvados, Luís Nassif Online - Blog, postado em 30/11/2008, às 9:24, disponível em http://www.projetobr.com.br/web/blog/5).

2. Aí está: uma coisa é o fenômeno em si, outra, o nome que damos a ele. Você questionou justamente o nome que dei para ele: "Tradição". Por quê? Há alguma relação pessoal/emocional muito forte entre a "tradição" e você, a ponto de ser "difícil" admitir que a tradição é o vértice ventral de onde é parida a "Tradição" (a pergunta não é provocativa, é honesta)? Ou seja, trata-se de um incômodo pessoal? Ou, antes, nada disso, trata-se, a rigor, de um problema rigorosamente terminológico - como duas coisas tão completamente diferentes (conquanto uma esteja ligada geneticamente à outra [mas não vice-versa]) podem ter o mesmo nome, com a única distinção de uma maiúscula? De imediato, assumo que você, como afirmou, reconhece o fenômeno - há um Sistema de Poder operando sobre as consciências de pessoas, Poder Institucional, Gestor das Normas, Legislador das Práticas, Mitoplasta das Doutrinas. Trata-se, agora, então, de discutir os termos.

3. Por hora, como é preciso arrancar, como cracas (que trabalho!), o véu que cobre a "tradição", continuarei usando o termo "Tradição". Deixe-me ensaiar uma teoria - a "Tradição" funciona assim - 1) na tradição, um sistema de informações qualquer, não-coincidentemente ligado ao Poder, metamorfoseia-se em "sistema doutrinário fechado"; 2) a partir daí, em guerra de conquista contra todos os demais sistemas, coopta alguns (a Teologia cooptou a Filosofia e a Razão) e ataca furiosamente outros (as Ciências Humanas, por exemplo, reduzidas a um discurso inútil, como Tomás que Aquino fez com Aristóteles, mais cedo - a Teologia odeia Epistemologia!); 3) a Tradição inflaciona-se e sobrepõe-se à "tradição", como um íncubo/súcubo, sufocando-lhe a "alma" e emprestando-lhe um corpo, como faz o caranguejo-ermitão, com a diferença significativa de que o caranguejo deixa-se à mostra, ao passo que o Poder/Tradição quer-se fazer passar por tradição, escondendo sua verdadeira face e intenção; 4) a identificação fraudulenta e programática entre Tradição e tradição é tão forte (e antiga!) que custa aos sujeitos coonestadamente cooptados a perceber onde, de fato, estão (Morin esteve dentro Dela, e saiu - a Tradição, aí, era o Marxismo histórico, de partido; eu estive dentro Dela, e saí - a Tradição, aí, era a alienação teológico-metafísica da Verdade-Dogma: o "evangelho" é saber que se pode sair...).

4. O que mais me impressiona em Vattimo é isso: ele sabe que o Cristianismo foi, antes de tudo, um usurpador - palavra perfeita, em todos os sentidos, noológicos, epistemológicos, econômicos, geopolíticos, estéticos. Sabe que a Tradição é filha única desse demônio (os anjos que borboleteram aqui e ali, nessa Tradição não chegaram necessariamente a fazer grandes estragos no sistema - foi a Revolução Francesa (a estadunidense fez-se nele, dentro dele e por meio dele, e por meio dele manteve-se escravocrata, exclusivista e proto-nazista [cf. Domenico Losurdo]) que, catalisando fenômenos esparsos de uma Europa cravada entre a Reforma e a Contra-Reforma (Iluminismo, Empirismo, Romantismo), destronou o Poder Temporal das mãos do clero, gestor histórico e programático da Tradição/"tradição". Como pode Vattimo querer fazer dessa Tradição a tradição? Ele tem consciência do que está fazendo: mantém-se a roda girando exatamente como girando ela está! - ou, no fundo, trata-se de uma operação encomendada, um acerto de contas, para que o status quo seja dividido entre as cabeças pensantes de ambos lados?

5. Não há negociação possível. Enquanto a tradição não vir-se livre (defintivamente?) da Tradição - essa, Cristã [enquanto "Tradição"], que aí está - ela não pode negociar, tergiversar, condescender. Tem de denunciar, instante a instante, que o Diabo faz-se tentadora fruta vermelha, chega a falar palavras bonitas, de dicionário de espiritualidade e tudo, mas, no frigir dos ovos, o que Ele quer, de fato, é nossa alma.

6. Depois, Haroldo, não me importa o nome que se vai dar a isso. Por hora, "Tradição", com T maiúsculo, diz bem o que quero dizer. E, se ao menos o fenômeno está visível, indisfarçavelmente visível, ineludivelmente e iniludivelmente visível, serviu já para desnudar a estratégia camaleônica desse "Deus", então está tudo caminhando bem...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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