terça-feira, 4 de setembro de 2012

(2012/664) Sobre o mito de Adão e Eva e os reaproveitamentos próximo-psicológicos da doutrina do pecado original


1. Quando o sujeito se deixa animar, ainda que seja só um pouquinho, pelo modo crítico de ler os textos bíblicos; quando ele se encanta um pouco pela leitura mais filosófica das tradições; quando ele se dá a frequentar ambientes em que a tradição não é recebida de modo catequético - fatalmente ele tende a assumir a condição mítica dos textos fundantes da Bíblia, entre eles, o mito de Adão e Eva.

2. Aí, nesse ponto, ocorre um fenômeno curioso. O sujeito vai dizer que, sim, é mito, mas, olha lá, há a questão junguiana, profunda, da psiquê - por trás do mito há uma "verdade" humana, antropológica, profunda...

3. Minha avaliação do movimento: mudar tudo para não mudar absolutamente nada.

4. O dogma do pecado original vai para a cucuia, mas fica o seu efeito fundamental, antropologizado, naturalizado, tornado a marca da espécie. O movimento agrada a teólogos que, sem poder negar a carga mítica da superfície da narrativa, não podem abrir mão de sua condição existencial de danados, peRdidos, pervertidos, degenerados. O dogma fez-lhe um ninho de abutres na alma, e eles gostam da temperatura das fezes da ninhada...

5. Todavia, há que considerar uma questão: por trás da aproximação junguiana dos mitos há o pressuposto de que eles são a construção profunda de um povo, de uma nação, de uma tradição. Às vezes, ainda pior: é  a obra de um "inconsciente" coletivo - isto é, uma coisa-Deus lá debaixo... Por exemplo, o mito de Adão e Eva é a construção próximo-weberiana dos judeus, dos israelitas, dos hebreus, daquele "povo bíblico", sensível, antenado com Yahweh, digo, com Deus - mais ainda, com o próprio Jesus, sem que disso se deem conta...

6. Com essa operação implícita: o mito é a construção harmônica e uníssona da alma de um povo, é fácil, agora, aceitar a desteologização imediata da doutrina, mas manter a sua eficiência existencial: somos danados não por uma conversa matreira com a serpente, mas por uma marca da espécie... Mudou o quê, cara-pálida? Nada. O teólogo trocou de roupa, usa jeans, mas uma tomografia de sua cabeça revelará os mesmos anjos, arcanjos e diabos  a pôr ovos...

7. Pode-se, e é meu caso, ler a elaboração da narrativa de outro modo, menos weberianamente, eu diria, mais marxianamente: o mito de Adão e Eva está longe de ser a elaboração profunda de um povo, de uma nação, mas a elaboração política e teológica de um grupo sociopolítico, os sacerdotes, contra o povo, contra os campesinos, para fazer deles danados e desgraçados, para pô-los na dependência do templo - no que foram muito, muito, muitíssimo bem-sucedidos, e tanto, que Maria, a imunda, terá de levar o filho Jesus, o imundo, para purificar-se - no templo - aos oito dias de seu imundo e puerperal nascimento... Aliás, não se trata apenas, em Adão e Eva, do templo contra o camponês, que tem de sujeitar-se, mas, da mesma forma, do templo contra a mulher. É o templo contra todos - e a favor de "Deus" (sei!)...

8. Se você entende a narrativa como tendo sido elaborada assim, na guerra, no cálculo, na política de controle social, sabe que ali não vai nada, absolutamente nada, da alma humana, conquanto se encontre ali tudo, tudo, absolutamente tudo dessa espécie sacerdotal: fazer do outro um depravado, fazer de si um santo, e transformar a relação de danado e santo na relação respectiva, de dependência e controle - como ainda é, até hoje... e como se dessa relação derivasse a "libertação" e a "liberdade"...

9. Não. Não me venham com a lenga-lenga da "dimensão" profunda, antropológica, dessas peças de maldade. É preciso, antes, desmontá-las, e libertar a consciência dessa prisão de morte, dessa gaiola eletromagnética que, mesmo desfeita a "religiosidade" afetada, ainda opera nas consciências que se consideram a si mesmas mais iluminadas e, todavia, ainda têm ao pé essa corrente de sacerdotes...

10. Seja como for, para além e para aquém de meu arroubo retórico - é minha marca - há que se perguntar o que foram exatamente essas narrativas: foi "Israel" que a escreveu, ou, antes, como penso, foram - apenas - os aritméticos e políticos sacerdotes?

11. História, senhores, História, senhoras - o resto, é mais do mesmo, mais da tradição com que nos moldam, pastéis de feira, recheio de vento...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

4 comentários:

Diego Nunes de Araujo disse...

Olha o coração Prof. Osvaldo. Bom texto. Simplesmente arrepiante o final. Já desconfiava que era um pastel. Kkk

Jones F. Mendonça disse...

Osvaldo,
Acho que o problema está em querer atribuir valor ao “substrato profundo” do mito. Ele é profundo não porque contém uma “verdade existencial”, mas porque trabalha com temas universais como o medo, a angústia, a esperança e instintos do ser humano. É profundo porque está no fundo da “alma” e não porque veio do céu.

Eu não acho que os mitos sejam, necessariamente, uma invenção de uma mente manipuladora. A política vem depois, nas reelaborações.
Quanto aos sacerdotes do antigo Israel, não tenho nenhuma dúvida de que fizeram isso. É mais ou menos o que C. S. Lewis fez com os mitos nórdicos em “As crônicas de Nárnia”. Trocou-se a Mesopotâmia pela Europa setentrional.

Peroratio disse...

Olá, Jones. Sempre bom revê-lo.
Boas considerações. A sacada do Lewis, formidável... Me dá o que pensar.

Quanto ao mito... Veja, o que temos de concreto é o uso opressor que o sacerdote fez do mito.

Resta sabermos se se pode retroagir os mitos até uma era em que não nasceram por gestos opressores, mas nascem da "alma" uníssona do povo... Até que ponto isso é histórico?

Lair disse...

Estou tentando ler Mircea Eliade no livro "Aspectos do Mito" e ele afirma que o mito ensina aos povos que nele crê o modo correto de se comportar.

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