1. A conta que não fecha é a aritmética do "amor de Deus" e do "inferno". Não dá pra somar.
2. Primeiro, uma digressão histórica. No judaísmo, nenhuma das duas doutrinas é original. Os judeus do AT não criam num Deus bom - criam num Deus-rei soberano, que fazia tanto o que era bom quanto o que era mau, que dava vida e matava, que dava paz e mandava guerra. Só depois do encontro com os persas que, depois de um longo tempo, de décadas e séculos, é que passaram a considerar que Deus fazia apenas o bem, e que o mal era feito pelos diabos.
3. De igual forma, os judeus do AT não tinham céu e inferno. A noção de juízo final e de condenação dos maus - inferno - foi aprendida com os mesmos persas (aliás, grande parte da fé cristã é persa). No final dos tempos, o deus bom vai lutar contra o deus mal - ambos, filhos do Grande Deus, Ahura Mazda, e, então, os exércitos do bem ganharão, e os exércitos do mau serão condenados.
4. Funciona bem na Pérsia, porque são dois deuses diferentes - um é bom, outro, mau. No judaísmo, que não aplicou o modelo inteiro - deus bom versus deus mal - mas uma adaptação não equilibrada do sistema - um deus bom versus um diabo-anjo -, a conta não fecha.
5. Se Deus ama a todos, e se o amor encobre uma multidão de pecados, bastaria perdoar ou - se preferem a saída de Paulo - cobrar em Cristo-Cordeiro o pecado de todos. Mas não é assim que se crê: crê-se que uns, que Deus ama, vão para o céu, e outros, que Deus ama também, vão para o inferno...
6. Ou seja: não vale muito o amor de Deus...
7. Compreende-se, pois, a série de remendos que a teologia foi recebendo.
8. Calvino tentou resolver o problema com a noção de eleição. O amor, então, não tem qualquer validade - é um resíduo psicológico. O que vale é a soberania. Resultado: Deus é sádico, um déspota caprichoso.
9. Anselmo tentou resolver o problema dando uma irmã gêmea ao amor, a justiça. Assim, ainda que Deus ame, não pode fazer nada: a justiça exige compensação.
10. O universalismo tenta resolver o problema dissolvendo a condenação eterna: no final, dado o amor de Deus, todos serão salvos...
11. São, todas elas, tentativas de resolver o problema.
12. Mas seria mais simples lembrar que, à semelhança das doutrinas de inferno e bondade de Deus, a doutrina do pecado é outra pérola da cultura hebraica, sacerdotal. Basta lembrar disso para que todo o peso do juízo final se dissolva.
13. É coisa de sacerdotes...
14. Porque há aquela outra tradição: "nem eu te condeno"...
15. Não é à toa que o mataram...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. meu amigo Nelson Lellis deixo o comentário abaixo:
Após enviar este post a uma amiga judia, perguntei-a:
- Os judeus veem problema nisso?
- Que nada!, a gente estuda isso desde criança na escola. - respondeu-me.
Pois é, senhor Osvaldo, o problema continua nos pressupostos da leitura, nos pré-conceitos diante da História.
Que Deus abençoe sua pá!
PS. meu amigo Nelson Lellis deixo o comentário abaixo:
Após enviar este post a uma amiga judia, perguntei-a:
- Os judeus veem problema nisso?
- Que nada!, a gente estuda isso desde criança na escola. - respondeu-me.
Pois é, senhor Osvaldo, o problema continua nos pressupostos da leitura, nos pré-conceitos diante da História.
Que Deus abençoe sua pá!
E eu tenho o seguinte a dizer. Não entendi exatamente o sentido do comentário. Mas eu diria que o judaísmo - de hoje - não tem nada a ver com o AT, nem mesmo com o NT. O judaísmo não segue a doutrina do "diabo". De modo que não sei nem mesmo se a amiga de Nelson entendeu o que eu disse. Se o judaísmo não desmembra o mal e o bem em Deus, nada do que eu escrevi lhes aplica. Aplica, sim, ao judaísmo do período persa-helênico e do período do NT, porque aqueles primeiros cristãos era, sobretudo, judeus. Mas o judaísmo posterior transformou-se em outra coisa - e, nesse sentido, reintegrou em Deus, numa mística terapêutica, os opostos que marcam a vida.
2 comentários:
Após enviar este post a uma amiga judia, perguntei-a:
- Os judeus veem problema nisso?
- Que nada!, a gente estuda isso desde criança na escola. - respondeu-me.
Pois é, senhor Osvaldo, o problema continua nos pressupostos da leitura, nos pré-conceitos diante da História.
Que Deus abençoe sua pá!
Ao perguntá-la: "o judaísmo vê problema nisso?", deveria ter registrado por aqui também outro comentário meu: "porque o cristianismo, sim". Se a leitura judaica da época sobre D'us é "convertida" ou "convencida" de tempos em tempos e de encontros e encontros com outros povos, a leitura do cristianismo sobre o AT é toda "montada" para satisfazer aos dogmas e profecias que convêm. Daí vem a História e desmonta, faz desmoronar os pressupostos dessa mesma leitura e construção. O judaísmo de hoje, sim, é diferente. O cristianismo de hoje também. Mas os demônios são os mesmos. E isso está bem claro.
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