domingo, 12 de fevereiro de 2012

(2012/183) Vostok - a estação, o lago e a "fé" que, dizem, a ciência comporta


Estação Vostok



2. Pois bem: exatamente embaixo da Estação Vostok está localizado o lago de igual nome - Lago Vostok, cuja existência foi confirmada em 1996 e cujas águas estão para ser atingidas pela perfuração que já dura 20 anos: em fins de 2012, alcançaremos a parte superior do lago subglacial.

Imagem de satélite do imenso Lago Vostok
3. Quero transformar essa histpória numa reflexão sobre a diferença incomparável entre a "fé" - se é que se pode chamar de fé, mas há quem chame -, a "fé" própria da ciência e a "fé" própria da religião (exceto a de Pascal - comento ao final).

4. Pois bem, estou informado que que a existência de lagos subglaciais foi teorizada pela primeira vez pelo glaciologista russo Igor A. Zotikov - o efeito da pressão conjunta entre o solo antártico e a massa de gelo glacial (quase 4.000 metros de altura) produziram o efeito de impedir o congelamento da água, mesmo a temperaturas tão baixas.

5. Os testes iniciais foram feitos com radares e eco-explosões, e a convicção de que havia uma massa colossal de água sob o manto glacial só fazia aumentar. A perfuração em direção ao lago começou há mais de vinte anos, mas a confirmação da existência do lago deu-se apenas em 1996, por meio de análise de imagens de satélite (imagem 2).

6. Com câmeras especiais, que captam imagens sob o manto glacial, foi possível trazer à tona a imagem do fenômeno geográfico escondido há 3,7 mil metros de profundidade.

Corte esquemático do Lago Vostok
7. O lago é imenso - tem as dimensões do Lago Ontario ou da Lagoa dos Patos. Chega a ter 800 metros de profundidade, na parte mais funda. 250 km de extensão média e 50 km de largura média.

8. As águas do lago são, naturalmente, muito antigas - estima-se que, pelo menos, 1.000.000 (a Wired fala de 14 milhões!) de anos. Isso quer dizer que não estão "contaminadas" com nossa atmosfera. Além disso, podem conter vida "pré-histórica" - o que seria possível na forma de bactérias e micro-organismos.

9. A perfuração já atingiu uma distância de apenas centenas de metros da casca superior do lago. E foi interrompida até que o inverno termine. Foi desenvolvida uma broca especial, à base de óleo de silicone, além de uma estratégia para evitar a contaminação das águas de Vostok quando a broca a atingir, o que acontecerá em fins de 2012. - é o que se diz.

10. A comunidade científica está ansiosa. Será a primeira vez que teremos acesso a águas tão antigas e preservadas - e a possibilidade de descobertas científicas é grande.

11. Pois bem. Vamos à questão da "fé" - fé? - de que a ciência se serve. Um cientista tem uma intuição, uma hipótese. Reflete sobre ela, a partir de teorias de seu domínio e das eventuais evidências de que dispõe. Se a teoria disponível não dá conta, cria outra - sempre a partir de uma estreita relação com o mundo real. Quando considera madura a reflexão, ele a expõe.

12. O que se tem aí é uma hipótese. Ela nada tem a ver com a fé da religião - nada. Ela é fruto de reflexão crítica, aplicada sobre uma intuição, à luz de evidências, no conjunto de uma teoria, sempre - absolutamente sempre - com o mundo real, físico, como pano de fundo. Isso nada tem a ver com "fé".

13. Agora, passa-se à fase do teste: é o teste o responsável por fazer com que uma hipótese passe à fase seguinte: conhecimento comprovado. A fase de hipótese deseja, ardentemente, ser superada, de modo que a hipótese se transforme em conhecimento objetivo. O risco é ser refutada. Mas é próprio da ciência destruir dez hipóteses para trazer à tona um único conhecimento.

Imagem do satélie Aqua revelando dois lados subglaciais
próximos ao Lago Vostok
14. No caso do Lago Vostok foi exatamente assim. Uma suspeita (intuição). Reflexões críticas, baseadas nos conhecimentos e nas evidências disponíveis. Uma hipótese é levantada: há lagos subglaciais - sob a imensa manta de gelo, de milhares de metros de altura, há água.

15. Começam os testes - eco-explosões, com análises sísmicas, sonares. Depois, satélites (como o Aqua, por exemplo) varrem a superfície glacial. E lá aparece a marca do lago, de 3,7 mil metros de profundidade, como uma tomografia do manto de gelo.

16. Não há mais dúvidas nem hipóteses: agora, trata-se de conhecimento objetivo - há um lago subglacial sob a Vostok. Sob os mantos glaciais, mais de 150 até agora descobertos!

17. A suspeita intuitiva de que havia alguma coisa lá embaixo, de que devia haver, a isso se chamará fé e, mais do que isso, a isso se comparará a fé religiosa? Não me parece adequado.

18. Primeiro, porque a fé religiosa não se entende a si mesma como hipótese a ser testada - pelo contrário, ela é um estado de consciência absolutamente autocrático: ela não pode ser posta em dúvida, não pode ser questionada, não pode ser tratada como uma possibilidade. Ela "é" - e exige ser tratada assim. Exige que se mate ou se morra por ela.

19. Segundo, a fé religiosa não precisa de comprovação alguma - pelo contrário: diante de uma contestação, ela fecha os olhos, tapa ou ouvidos e grita desesperadamente, a ver se o "inimigo" se assusta e foge. Quando não, "amorosamente", "tolera" os fracos de doutrina, por amor de Cristo: são os doentes de amor - estes, não aqueles...

20. A fé religiosa cega. E o religioso orgulha-se de seu estado de cegueira - que, por meio de um fenômeno de dissonância cognitiva, considera "iluminação", "revelação" e "verdade".

21. Eu conheço apenas uma proposta teológica que rompe com o modelo clássico da fé religiosa, conquanto nem assim possa ser comparada adequadamente ao jogo científico: a teoria da aposta, de Pascal.

22. Fisgado pela racionalização moderna, Pascal sabe que a fé religiosa é automaticamente alienante e possessiva, que não tem consistência heurística de nenhuma natureza e que, a despeito disso, exige obediência cega: a fé religiosa é ditadora. Assim, ele abre mão do conceito clássico de fé, mas não sua tradição. E a única alternativa que lhe resta, então, é: eu aposto que estou certo: posso perder, mas aposto minha vida nisso...

23. Ora, esse "posso perder" já soa, à fé clássica, como apostasia.

24. Nesse ponto, com a evocação do modelo de aposta, tanto se põe a perder o mundo antigo, quanto se põe a perder o mundo novo, porque o "objeto" da fé religiosa é de natureza tal que não há como saber se se ganhou a aposta - ninguém jamais saberá. Pascal é mais alguém tentando manter o gelo na frigideira do que um homem de alma verdadeiramente moderna...

25. Não, não há relação entre a fé religiosa e a ciência - e tratar a intuição e a hipótese científica como fé é provocar um fenômeno de dissonância cognitiva para não se ver obrigado a admitir que, no fundo, a fé é fenômeno de todo pré-moderno, heterônomo e necessariamente alienante.

26. Constrangedor a um teólogo confessá-lo. Mas, recordo-me que me tornei teólogo porque amava a verdade... E ainda a amo. Esteja ela onde estiver. E, senhores, nesse caso, não está, nem um fiapo dela, na mão de quem quer reduzir ciência e fé ao mesmo nicho epistemológico.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

3 comentários:

Anônimo disse...

Osvaldo,
a aposta de Pascal pra mim, junto com um derivativo seu, que é o argumento lançado contra um interlocutor descrente de que "se você estiver certo eu estou na boa, mas se eu estiver certo você está ferrado", à parte a impossibilidade de se saber o resultado, me soa extremamente desonesta.
Chegar diante de Deus - e aqui pressupõe-se sua existência pessoal - e querer boa acolhida por ter apostado na sua existência (se Deus existe e eu creio nEle eu estou bem) é pedir pra morrer - claro que aí seria a 2.ª morte.

Peroratio disse...

Luciano, o seu pressuposto é o seguinte: Deus se agrada de que, na situação de absoluta cegueira, eu acredite no que me disseram, isto é, que Ele existe, e empenhe nisso minha vida. Se eu fizer isso, ela fica alegre.

Bem, eu acho que se essa precisa for verdadeira, Deus é sádico.

No fundo, ninguém acredita em Deus sem que antes acredite em alguém que lhe conte: quem acredita em Deus acredita numa história que lhe contaram.

Por que tenho que acreditar que Deus exija das pessoas que, sem nenhuma evidência, creiam nele?

Não faz sentido.

Penso que, se há um Deus, ele receberá a todos, crer tenham crido, crer não. Porque sabe que crer ou não não tem nada a ver com Ele.

Quanto a Pascal, é um desespero de causa. Um homem que aprende o que ele aprende, ou chuta o pau da barraca, ou enfia a cabeça no buraco e finge que não aprendeu ou tenta uma solução maluca: ele tentou. Bem maluca.

Igreja Batista Memorial da Posse disse...

O QUE É A CIÊNCIA? UM ESFORÇO POR MANTER UM COERÊNCIA METODOLÓGICA E TEÓRICA QUANDO SE PERCEBE PADRÕES. NÃO TEM NADA DE VERDADE NISSO. É APENAS UMA, DIGO "UMA"(1) MANEIRA DAR SENTIDO AO MUNDO....APENAS ISSO. E NISSO A CIÊNCIA AINDA ENGATINHA SE COMPARADO COM UMA OUTRA MANEIRA DE DAR SENTIDO AO MUNDO "A RELIGIÃO". NÃO ESTOU DEFENDENDO A RELIGIÃO, MAS ACHO A CIÊNCIA MEIO QUE COM SÍNDROME DE IRMÃO CAÇULA - QUERENDO CHAMAR A ATENÇÃO E ROUBAR A POSIÇÃO DO IRMÃO MAIS VELHO.

A QUESTÃO POSTA É: A QUEM INTERESSA O ESVAZIAMENTO DO "PENSAMENTO MÁGICO RELIGIOSO" QUE PERDUROU E CONTINUA DURANTE MILÊNIOS E AGORA DE UNS 200 ANINHOS PRA CÁ VEM A "RACIONALISTA", O ILUMINISMO E OUTROS "ISMOS".....MAS NO FIM DAS CONTAS NOS VOLTAMOS PARA AS MESMAS QUESTÕES E A FALTA DAS MESMAS RESPOSTAS....COMO MUDAR MILÊNIOS DE MÁGICAS E MITOS E QUE A CIÊNCIA OFERECE AOS ALIENADOS ACRÍTICOS RELIGIOSOS? AH TÁ! DEVE SER A LIBERTAÇÃO PELO CONHECIMENTO....SERÁ?

AH JÁ IA ESQUECENDO, EM TESE A CIÊNCIA USA A MESMA ESTRATÉGIA QUE A RELIGIÃO USA: CONTROLE DO CONHECIMENTO, PELA LINGUAGEM E PELO O QUE SE ESTUDA.

MINHA QUESTÃO É: SERÁ QUE PODEMOS SIMPLIFICAR A RELIGIÃO COMO UM PROCESSO ALIENANTE? POR QUE AS PESSOAS, AINDA HJ, E TALVEZ SEMPRE, CONTINUARAM CRENDO APESAR DE TUDO MOSTRAR O CONTRARIO? POR QUE UM GRUPINHO DE ILUMINADOS PESA QUE PODEM DESMONTAR UMA "MENTALIDADE" MILENAR? NO FUNDO O QUE SE BUSCA SÃO INTERESSES, ENTÃO A PERGUNTA É A QUEM INTERESSA? CIÊNCIA E RELIGIÃO SÃO APENAS INSTRUMENTOS DOS MESMOS GRUPOS DE NOSSA CIVILIZAÇÃO. PODER, É DISSO QUE ESTAMOS FALANDO.

CIÊNCIA E RELIGIÃO PRA MIM É O MESMO ÓPIO. O QUE NOS RESTA? O RELACIONAMENTO? A EXPERIÊNCIA? O RESTA É O SER E O QUE COMPARTILHAMOS....NO FIM....RESTA A NOSSA ESCOLHA...LIVRE ARBITRIO...CRER OU NÃO.

CEZAR UCHÔA JÚNIOR

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