terça-feira, 15 de março de 2011

(2011/179) Melhores do que Deus, melhores do que a natureza - reflexões à pele nua


1. Expresso-me fenomenologicamente. O aviso é para os desavisados. Avisados, passo a dizer: os seres humanos, nós melhoramos "Deus" - quem sabe melhorar a natureza?

2. Explico. Os deuses surgiram como forças projetadas desde as energias incontroláveis da vida - as energias de vida e as energias de morte: os rios, os mares, os terremotos, os trovões, os relâmpagos, as tempestades, os tsunamis, as plantações, as estradas, os campos, as montanhas, o céu, o Sol, a Lua - a vida e a morte.

3. Depois, vieram os reis. Apoderaram-se dos deuses. Isso fez dos deuses seres ainda mais cruéis, quantas vezes... Todavia, também os reis necessitavam de usar rotinas demagógicas - o preço que pagavam pela submissão dos súditos eram os cuidados, os zelos. Os deuses continuaram terríveis, fortes, coléricos, mas também cuidavam das pessoas. Talvez igualmente tenham cuidado desde o início - talvez essa ambiguidade de matar e dar vida já estivesse presente desde o início, antes dos reis, mas, eis a questão, o período - enorme! - dos reis explicitou esse "valor" do cuidado. Pouco a pouco, o caráter mau dos deuses foi-se tornando-se alguma coisa incômoda, pouco a pouco, os deuses foram ficando envergonhados, fracos, controlados pela moral humana.

4. Não tardou a que os deuses começassem a ser desenhados como seres bons, apenas bons. Quanto mais moralizada uma cultura, tanto mais morais se tornavam os deuses, a ponto de o Deus cristão ser o símbolo da moralidade - eventualmente, da justiça, mas muito mais da moral do que da justiça, certamente. No céu, inventamos o mito, haverá apenas o "Deus" bom, o bem - o mal, o "deus mau", terá desaparecido, para sempre... Vitória da moral...

5. A "humanidade" moralizou os deuses, tornou-os mansos, pacíficos. O processo não terminou - mas pode-se dizer que o desenvolvimento ético dos povos migrava lentamente, década a década, para o mundo dos deuses. Dizendo-se lá baseada, na verdade a ética nascia lentamente aqui, na terra dos homens, e subia, como fumaça, lá para cima. Num efeito disfuncional, num discurso que invertia os pólos do processo, ela, a ética, então, depois de ter subido, descia, dizendo-se divina, e acelerando o processo de eticização/moralização do planeta - que continua...

6. O processo de humanização e moralização dos deuses foi tão drástico, que, aqui e ali, eles, inclusive, eclipsaram-se. Por trás das suas faces, lá aparece a "Natureza". Especialmente a partir do século XIX - diga-se, de Darwin, mas, igualmente, do advento da Geologia -, a natureza assumiu o cenário cultural.

7. Jerusalém julgava tratar-se de um dragão a mover-se sob o chão, aquele mesmo dragão preso, quando da criação, que, agora, mexia-se, fazia a terra tremer, e fez jorrar a fonte que, por isso, foi chamada de Fonte do Dragão. Mito. Terremotos têm relação com movimentos naturais das placas tectônicas - quando é por essa causa que ocorrem, porque há outras, igualmente naturais.

8. Não é um dragão a se mexer. Não é Deus, em fúria - ele, agora, é só misericórdias... São as forças naturais de um planeta que nos tem por carrapatos às costas, menos que isso, por ácaros invisíveis, as responsáveis por terremotos, por tsunamis... Não há nada de teológico, aí - não no antigo sentido teológico... conquanto se possa fazer da Natureza a próxima, rediviva, Deusa...

9. A natureza é má - quer dizer, mas nem sabe disso. Ela é uma força cega, um ogro cego de mil metros a pisar formigas, e nem se lhe dá... Fez e faz experiências vivas, dá vida, mata, testa, experimenta, faz mesmo experiências genéticas - e a mula é um ponto final de um dos atalhos... A visão de um dia da Natureza tornaria pecado de criança todas as noites de desgraças humanas - e só não nos damos conta disso porque, a nossos olhos, a vida só tem valor se humana, e pouco de nos dá que, minuto a minuto, a roda da natureza estraçalhe toneladas de carne - de bactérias a elefantes: o festim natural, a orgia viva inexorável...

10. Quando é a natureza, que pode nos fazer desaparecer, achamos natural. Quando somos nós, fala-se do poder destrutivo de uma raça . Há muito de idealização nisso tudo. No fundo, fazemos algumas coisas melhores do que a própria natureza. Reclamam de nós porque construímos barragens, para, assim, produzir energia elétrica. Para isso, salvamos animais, retiramos gente de suas casas, damos-lhes novas, melhores. E o que faz a natureza? Olhem para o Japão, senhores... Quando a natureza espirra, melhor sair de perto...

11. Nós podemos ser melhores do que ela é. E podemos nos fazer como ela é. Não há como sermos piores do que ela. Já somos, naturalmente, naturais. Se formos naturais, seremos apenas tão cruéis quanto ela, mas nunca alcançaremos seu grau de requinte! E a consciência é mero detalhe, porque até a consciência humana é natural. Mas podemos ser melhores. Fazer melhor. Podemos ser a parte boa da criação. Antes do que pecado original, acho que a espécie humana é mesmo a salvação natural. Quando e se desejar ser mais do que natureza...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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