1. É preciso dar-se toda atenção ao sentido com que as palavras são empregadas - sejam quais forem. Nem sempre elas significam o que pensamos que significam. As palavras não têm suas patentes registradas, de modo que cada qual as pode usar do modo como lhe convém - e, assinale-se, nisso não há qualquer impropriedade.
2. Nos dicionários, as palavras têm os sentidos que historicamente receberam. Nenhuma palavra é ontologicamente unívoca. Quero dizer, não é próprio de nenhum sentido ser expresso por apenas uma palavra, nem é próprio de nenhuma palavra expressar um único sentido. Mesmo os códigos "fechados" podem ser quebrados e abertos, alegorizados, deslocados. Qualquer um pode pegar qualquer palavra e fazer dela o que deseja sua intenção. É sempre alguém que inventa tanto uma determinada palavra quanto o sentido que ela terá - até que um segundo lhe acrescenta outro sentido, um terceiro, outro, e ninguém mais controla a infinita correição dos sentidos possíveis.
3. E também não importa se duas palavras se articulam numa expressão - também as expressões podem ser veículo de muitos sentidos. João usa-as para dizer xis, José, ypsilom. E o mesmo se dá com textos, que, lidos por José ou João, podem soar aos ouvidos deles como coisas diferentes. "Leitura criativa"...
4. Todavia, o uso que João faz de uma palavra, de uma expressão ou de um texto, escrevendo-os, é um uso "único" - João pensa em xis, e usa determinada palavra, expressão ou texto para dizer esse xis que ele deseja dizer. A polissemia não constitui característa da intenção comunicativa, mas do seu veículo.
5. Veja-se o caso, por exemplo, da expressão "Teologia crítica". Eu a uso no sentido de uma Teologia que rompe com a perspectiva clássica da Teologia - revelada, dogmática, normativa, "no plano de Deus", para referir-me ao modo próprio da Teologia, nos termos que assim a define um eminente cientista da religião... Teologia crítica, para mim, é a Teologia que desceu definitivamente para a terra, abandonou a pretensão dos anjos, tornou-se surda para as coisas metafísicas e divinas e converteu-se ao jogo das Ciências Humanas. Teologia crítica, pois, é, para mim, uma nova Teologia, em oposição a todas as anteriores, desde Platão a Tillich, para mim, o último - em todos os sentidos - representante da escola clássica.
6. Todavia... É fácil encontrar no Oráculo - logo, na literatura teológica - a expressão Teologia crítica como outra coisa. Seu uso diferenciado do meu é legítimo, e contra isso nada posso dizer. Mas posso descrevê-lo, e tecer considerações sobre seu conteúdo - do qual divirjo.
7. Nessa literatura teológica, Teologia crítica é a Teologia clássica (mas) que faz críticas ao "sistema". Ou seja, ela é "profética" - é contra o neoliberalismo. Essa Teologia crítica é uma soma de Francisco de Assis e Paulo Freire, Karl Marx e Amós. Ela é "política", no sentido de que se põe em público para denunciar os deuses da Modernidade, da Pós-Modernidade, do Capitalismo, da Globalização, do Neoliberalismo. Numa palavra: ela é a velha Teologia, quando e se faz críticas político-sociais aos sistemas político-sociais que ela julga injustos e opressores. E eu não diria que não o são...
8. Nada contra o fato de essa Teologia ser de "esquerda". Se o termo "esquerda" vale para alguém que reflete nos limites do "gabinete", e o máximo que faz, em termos públicos, é espalhar postagens e artigos assim posicionados, então também sou de esquerda, e, nesse caso, ideologicamente afinado com a Teologia crítica enquanto "voz teológica" profética. Entretanto, não posso, honestamente, fazer qualquer distinção entre ela, enquanto sistema teológico, e a Teologia de Ratzinger, por exemplo.
9. Em termos políticos, vá lá, há quilômetros de distância entre a Teologia da Libertação, por exemplo, e a Opus Dei. Em termos epistemológicos, todavia, são a mesma coisa, a expressão do mesmo modus operandi - expressões culturais, políticas, tornadas por si mesmas em expressões da "verdade divina", e pronunciadas, ambas, com o phatos da revelação. Ou seja, a Teologia crítica só é crítica porque critica o "sistema", empregando para isso valores éticos não-necessariamente teológicos, marxistas, até. No entanto, não é crítica, no sentido epistemológico, mas é a mais antiga das expressões da Verdade - o mito, a retórica religiosa, do que depende, sobretudo, que todos aceitem o jogo, sem o denunciar.
10. Mas eu denuncio. Não há diferença epistemológica entre a Teologia-de-esquerda e a Teologia-de-direita. Há-o, evidentemente, do ponto de vista político. Do ponto de vista epistemológico, insisto, não. O fato de o campo de batalha da Teologia crítica ser o sistema, o status quo, a põe em conflito com o próprio "Deus", que a anima, mas, agora, enquanto articulado não mais por ela mesma, a Teologia crítica, de esquerda, mas pelos operadores do sistema, eles, de direita - contemplando o campo de batalha, observam-se os deuses "irmãos" em plena batalha pelo controle da gestão pública, pelo destino, pela sociedade, pela justiça, pelo futuro. É, todavia, o mesmo "Deus", em paranóia, o mesmo fenômeno - tão somente tornado evidente como cabo de guerra entre homens da mesma espécie de fé.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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