1. De longe, a disciplina mais importante que estudei no Curso de Teologia foi Psicologia da Religião. E olha que não foi num livro de algum mega-hiper-super autor estadunidense ou alemão: foi no brasileiríssimo Merval Rosa, da "insuspeitável" JUERP. Foi nessa disciplina que - finalmente - alguém me contou o que acontecera comigo em 10 de agosto de 1984, quando, no jargão evangeliquês, me "decidira por Jesus", e, em termos mais técnicos, mas, ainda assim, teológicos, me "convertera à fé cristã-evangélica".
2. Uma vez que nada lhe é explicado nesse dia, nem depois, pelo contrário, aproveitando-se de sua abertura e fragilidade emocionais, iniciam em você um processo de catequese - sem nenhuma diferença do que jesuítas fizeram com índios brasileiros -, você simplesmente "embarca" nas explicações mitológico-teológicas que lhe vão pondo goela abaixo, e que, na condição logo de também "discipulador", também eu passaria a fazer com terceiros. Você não "compreende" o fenômeno, você reproduz, você se entrega, torna-se um autômato, guiado por interpretações (e por pessoas) "espirituais" de um processo que, antes de espiritual, é, primeiro, absolutamnte psicológico.
3. Tornei-me um fundamentalista-biblicista. Uma espécie de santarrão biblicista. Um insensível santarrão fundamentalista. Sim, tornei-me um apaixonado pela Bíblia, mais do que por gente (como o sou - até hoje: aliás, fundamentalistas não gostam de gente, gostam de idéias e de coisas), mas encontrava-se absolutamente perdido, porque sem nenhuma orientação adequada - que a Igreja, simplesmente, não dá. Li a Bíblia inteira umas sete vezes nesse período. Tenho a minha primeira Bíblia, toda marcada, em cinco leituras, e uma segunda, com quase três completas. Mas se tratava de uma leitura não-compreensível, uma leitura teológico-cabalística, de estilo "sistemático", mas de vertente fundamentalista-dispensacionalista. Uma desgraça.
4. Mas, apaixonado pela Bíblia, um dia, entro na sala da União de Treinamento e observo alguma coisa escrita numa língua estranha no quadro-de-giz. Caço daqui, caço dali, descubro, com um seminarista, que é hebraico, e que a Bíblia, que eu achava que lia, tinha sido escrita naquela língua. Quis aprender. Fui para o seminário. Aprendi "a língua da Bíblia". Mas nem isso foi mais importante do que Psicologia da Religião.
5. Psicologia da Religião me fez compreender-me como sujeito religioso, e me fez compreender como era "natural" o processo de conversão - mudança de cosmovisão operada cognitivo-afetivamente. Pronto - a "magia" perdeu o efeito: religião era coisa humana, natural, psicológica,, e devia ser compreendida humanamente. Os pregadores deixaram de ser mágicos, e tornaram-se oradores, como políticos, sem diferença. Nunca mais pude ouvir sermões da mesma forma, porque sei o que eles, os pregadores, estão fazendo, saibam disso ou não, e sei o que está acontecendo, e sei o que acontece comigo. Quando você "sabe", a magia perde o efeito, não enfeitiça mais, não encanta mais. "Enquanto não começarmos a entender, nossos espíritos estarão desarmados" (Edgar Morin).
6. Depois que me graduei, estudei por conta própria Fenomenologia da Religião. Aí o ciclo se fechou. Se Psicologia da Religião me fizera autoconhecer-me enquanto sujeito religioso, a Fenomenologia da Religião desmistificava o fenômeno religioso por inteiro, e de um jeito, que, apesar de igualmente relevantes, nem Filosofia da Religião, nem Sociologia da Religião, nem Antropologia da Religião haviam conseguido. Eu era, doravante, um homem livre... a "salvação" não estava na magia da fé, mas na contra-magia do conhecimento... O que parecera "liberdade em Deus" houvera sido, por algum tempo, "prisão dos homens santos".
7. Eu, honestamente, não entendo como há tanta gente, na prática, milhares de estudantes de Teologia, que passam por essas disciplinas, e nada lhes acontece. São uns, antes delas, e permanecem os mesmos, depois. É como se não tivessem deixado que elas entrassem na circulação. É como se não tivessem entendido nada. É como se não tivessem extraido delas as suas conseqüências. É como Tomás de Aquino fez com Aristóteles - fingir que o apreendeu, tirar até 10 na prova, quando, na verdade, o castrou, quando, a rigor, deixou-se a água escorrer pela encosta...
8. Eu entendo o apavoramento geral de lideranças teológicas - falo de reitores, coordenadores, professores ("gestores") de Instituições de Ensino Superior que têm cursos de graduação em Teologia, autorizados/reconhecidos pelo MEC, e isso no Brasil todo - com o PARECER CNE/CES nº 118/2009: se as Ciências Humanas forem sistemática e decentemente ensinadas, pior, se elas forem sistemática e decentemente apreendidas, coisa que até hoje a Teologia não fez nem faz, (e, se depende "dela", não o fará jamais), acaba a "magia", e a Teologia torna-se "livre", humana, cultural, histórica, coisa que nunca foi até hoje, mercê da adminsitração dissimulada de sua auto-apresentação/compreensão na mão de profissionais do "céu", quando deveriam ser gestores pedagógicos antropologicamente comprometidos. Seu compromisso é com a doutrina e com a política, isso sim, para não falar dos cifrões em jogo.
9. A gestão manipuladora da Teologia assusta-se - apavora-se - desespera-se. É compreensivel. Eu gostaria de poder ajudar, insistindo no benefício de liberdade e pluralidade que as Ciências Humanas administrarão na reflexão teológica. Mas, no caso desses senhores e dessas senhoras, isso é perda de tempo. É política o que estão fazendo. Não querem que nada mude, porque, se muda, perdem o poder de gestão, de manipulação, desencantam-se alunos e alunas, e a Teologia passa a caminhar com as pernas de um novo corpo, não sacerdotal, não sistemático, mas crítico, e, posto que crítico, imprevisível. Os passos que esse corpo dará, para onde o levarão? Fala-se da boca para fora de coisas de "espírito" e de "vento", que vem, que vai, mas, na prática política concreta, vento coisa nenhuma - é por aqui, boiada...
10. Eu conto os dias, as horas, para ver esse momento chegar - o das Ciências Humanas, como Neo, entrarem no corpo da Teologia mágico-política, e explodi-lo em trilhões de nanopedaços. Livre, a Teologia, transformada em Ciência Humana, poderá, pela primeira vez em cem mil anos, olhar para si como humana, e recomeçar sua caminhada... livre de si mesma... livre de Deus... Não, os problemas não acabarão aí - ela se tornará humana!, se me faço entender. Mas é como humanos que resolveremos nossos problemas, sem fingirmo-nos de deuses.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS1. aos teólogos que desesperam-se com a possibilidade de uma radical transformação da Teologia, recomendaria aplicarem ao processo um mito cristão, que, quando se faz necessário, costuma-se usar - o da quenosis... Se é fácil para um teólogo ensinar (se aprendeu, tenho dúvidas) que seu Cristo-Deus encarnou-se e fez-se verdadeiramente humanao, nada como aplicar à Teologia também essa narrativa: fazer da Teologia um empreendimento verdadeiramente humano (não pseudo-humano, como na Teologia de Barth, "conversa mole para boi dormir") [o problema, eu sei, e sei que vocês também sabem,, quem não o pode saber são alunos e ovelhas, é que, para uma narrativa de um Cristo-Deus quenósico "funcionar", só se crendo que a Teologia é divina... daí o terror às portas].
PS2. Tic, tac, tic, tac, tic, tac...
2. Uma vez que nada lhe é explicado nesse dia, nem depois, pelo contrário, aproveitando-se de sua abertura e fragilidade emocionais, iniciam em você um processo de catequese - sem nenhuma diferença do que jesuítas fizeram com índios brasileiros -, você simplesmente "embarca" nas explicações mitológico-teológicas que lhe vão pondo goela abaixo, e que, na condição logo de também "discipulador", também eu passaria a fazer com terceiros. Você não "compreende" o fenômeno, você reproduz, você se entrega, torna-se um autômato, guiado por interpretações (e por pessoas) "espirituais" de um processo que, antes de espiritual, é, primeiro, absolutamnte psicológico.
3. Tornei-me um fundamentalista-biblicista. Uma espécie de santarrão biblicista. Um insensível santarrão fundamentalista. Sim, tornei-me um apaixonado pela Bíblia, mais do que por gente (como o sou - até hoje: aliás, fundamentalistas não gostam de gente, gostam de idéias e de coisas), mas encontrava-se absolutamente perdido, porque sem nenhuma orientação adequada - que a Igreja, simplesmente, não dá. Li a Bíblia inteira umas sete vezes nesse período. Tenho a minha primeira Bíblia, toda marcada, em cinco leituras, e uma segunda, com quase três completas. Mas se tratava de uma leitura não-compreensível, uma leitura teológico-cabalística, de estilo "sistemático", mas de vertente fundamentalista-dispensacionalista. Uma desgraça.
4. Mas, apaixonado pela Bíblia, um dia, entro na sala da União de Treinamento e observo alguma coisa escrita numa língua estranha no quadro-de-giz. Caço daqui, caço dali, descubro, com um seminarista, que é hebraico, e que a Bíblia, que eu achava que lia, tinha sido escrita naquela língua. Quis aprender. Fui para o seminário. Aprendi "a língua da Bíblia". Mas nem isso foi mais importante do que Psicologia da Religião.
5. Psicologia da Religião me fez compreender-me como sujeito religioso, e me fez compreender como era "natural" o processo de conversão - mudança de cosmovisão operada cognitivo-afetivamente. Pronto - a "magia" perdeu o efeito: religião era coisa humana, natural, psicológica,, e devia ser compreendida humanamente. Os pregadores deixaram de ser mágicos, e tornaram-se oradores, como políticos, sem diferença. Nunca mais pude ouvir sermões da mesma forma, porque sei o que eles, os pregadores, estão fazendo, saibam disso ou não, e sei o que está acontecendo, e sei o que acontece comigo. Quando você "sabe", a magia perde o efeito, não enfeitiça mais, não encanta mais. "Enquanto não começarmos a entender, nossos espíritos estarão desarmados" (Edgar Morin).
6. Depois que me graduei, estudei por conta própria Fenomenologia da Religião. Aí o ciclo se fechou. Se Psicologia da Religião me fizera autoconhecer-me enquanto sujeito religioso, a Fenomenologia da Religião desmistificava o fenômeno religioso por inteiro, e de um jeito, que, apesar de igualmente relevantes, nem Filosofia da Religião, nem Sociologia da Religião, nem Antropologia da Religião haviam conseguido. Eu era, doravante, um homem livre... a "salvação" não estava na magia da fé, mas na contra-magia do conhecimento... O que parecera "liberdade em Deus" houvera sido, por algum tempo, "prisão dos homens santos".
7. Eu, honestamente, não entendo como há tanta gente, na prática, milhares de estudantes de Teologia, que passam por essas disciplinas, e nada lhes acontece. São uns, antes delas, e permanecem os mesmos, depois. É como se não tivessem deixado que elas entrassem na circulação. É como se não tivessem entendido nada. É como se não tivessem extraido delas as suas conseqüências. É como Tomás de Aquino fez com Aristóteles - fingir que o apreendeu, tirar até 10 na prova, quando, na verdade, o castrou, quando, a rigor, deixou-se a água escorrer pela encosta...
8. Eu entendo o apavoramento geral de lideranças teológicas - falo de reitores, coordenadores, professores ("gestores") de Instituições de Ensino Superior que têm cursos de graduação em Teologia, autorizados/reconhecidos pelo MEC, e isso no Brasil todo - com o PARECER CNE/CES nº 118/2009: se as Ciências Humanas forem sistemática e decentemente ensinadas, pior, se elas forem sistemática e decentemente apreendidas, coisa que até hoje a Teologia não fez nem faz, (e, se depende "dela", não o fará jamais), acaba a "magia", e a Teologia torna-se "livre", humana, cultural, histórica, coisa que nunca foi até hoje, mercê da adminsitração dissimulada de sua auto-apresentação/compreensão na mão de profissionais do "céu", quando deveriam ser gestores pedagógicos antropologicamente comprometidos. Seu compromisso é com a doutrina e com a política, isso sim, para não falar dos cifrões em jogo.
9. A gestão manipuladora da Teologia assusta-se - apavora-se - desespera-se. É compreensivel. Eu gostaria de poder ajudar, insistindo no benefício de liberdade e pluralidade que as Ciências Humanas administrarão na reflexão teológica. Mas, no caso desses senhores e dessas senhoras, isso é perda de tempo. É política o que estão fazendo. Não querem que nada mude, porque, se muda, perdem o poder de gestão, de manipulação, desencantam-se alunos e alunas, e a Teologia passa a caminhar com as pernas de um novo corpo, não sacerdotal, não sistemático, mas crítico, e, posto que crítico, imprevisível. Os passos que esse corpo dará, para onde o levarão? Fala-se da boca para fora de coisas de "espírito" e de "vento", que vem, que vai, mas, na prática política concreta, vento coisa nenhuma - é por aqui, boiada...
10. Eu conto os dias, as horas, para ver esse momento chegar - o das Ciências Humanas, como Neo, entrarem no corpo da Teologia mágico-política, e explodi-lo em trilhões de nanopedaços. Livre, a Teologia, transformada em Ciência Humana, poderá, pela primeira vez em cem mil anos, olhar para si como humana, e recomeçar sua caminhada... livre de si mesma... livre de Deus... Não, os problemas não acabarão aí - ela se tornará humana!, se me faço entender. Mas é como humanos que resolveremos nossos problemas, sem fingirmo-nos de deuses.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS1. aos teólogos que desesperam-se com a possibilidade de uma radical transformação da Teologia, recomendaria aplicarem ao processo um mito cristão, que, quando se faz necessário, costuma-se usar - o da quenosis... Se é fácil para um teólogo ensinar (se aprendeu, tenho dúvidas) que seu Cristo-Deus encarnou-se e fez-se verdadeiramente humanao, nada como aplicar à Teologia também essa narrativa: fazer da Teologia um empreendimento verdadeiramente humano (não pseudo-humano, como na Teologia de Barth, "conversa mole para boi dormir") [o problema, eu sei, e sei que vocês também sabem,, quem não o pode saber são alunos e ovelhas, é que, para uma narrativa de um Cristo-Deus quenósico "funcionar", só se crendo que a Teologia é divina... daí o terror às portas].
PS2. Tic, tac, tic, tac, tic, tac...
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