Estou ainda sob o efeito interessante de ler - mas deverei reler - a resenha que Bruno de Oliveira escreveu de meu livrinho, mínimo opúsculo, O que é fé? O livrinho, mínimo e pequeno, fez parte de uma coleção da MK, editora voltada ao mundo crente pentecostal básico que, há uns oito anos ou mais, pediu-me que escrevesse sobre a fé. Eu perguntei se podia ser do meu jeito, com a minha abordagem crítico-humanista, e me foi dito que sim, desde que em linguagem acessível, simples, bem cão de fábrica. Tentei as duas coisas.
Está nos meus planos re-escrevê-lo inteiramente, j´pa que o prazo de cinco anos de direitos da MK já se esgotaram. Penso em manter sua linguagem simples, mas dar a ele espaço para aprofundar as questões.
A resenha é inusitada. Não esperava. E quem a escreveu levou o pequeno livrinho muito a sério. É uma sensação interessante essa: ler alguém escrevendo seriamente a respeito de algo que você escreveu. E em um blog. Ou seja: não se trata de atividade de encomenda - é um exercício de encontros...
Deixo aqui, abaixo, o texto da resenha, sumamente provocativa, e o link do blog de Bruno. A quem desde já, e publicamente, agradeço pela gentileza de ler-me e pelo tempo de vasculhar-me os sentidos expostos publicamente...
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Resenha: O que é fé? – Osvaldo Luiz Ribeiro
“Rechinam os meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!
Tinha um surrão todo de penas cheio…
Tinha um surrão todo de penas cheio…
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram… esvoaçaram no ar…
Todo de Deus me iluminei então.
Todo de Deus me iluminei então.
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
“Como é possível sem doutrinação?!”
Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas
“Olha! É o Idiota desta Aldeia” dizem…
Mário Quintana, poema XXX da Rua dos cataventos
Conheci poucas pessoas dentro das Humanidades que tivessem uma posição favorável à Teologia. Em sua maioria, elas a entendiam como uma espécie de fio que ligava a Idade das Trevas (e não propriamente a Idade Média) aos dias de hoje, a existir somente porque ainda há padres para lhe fazer remendos e fiéis para financiá-los. É claro, trata-se de uma caricatura, mas as caricaturas frequentemente tomam corpo, voz e poder reprodutivo, criando ninhadas de monstrinhos igualmente caricatos que, como bem sabemos, estão por aí. Apesar de qualquer verdade que possa existir nisso, no entanto, suponho que ninguém duvide que tal perspectiva da Teologia seja externa a ela e sirva especificamente para criticá-la, consequentemente, a reduz aos seus aspectos negativos sem que possamos saber o que ela teria de bom.
Pessoalmente, embora eu tivesse acreditado por muito tempo nesse modo de pensar, sempre senti certa desconfiança em relação a ele. Como ex-teísta, reconheço-me facilmente naqueles que creem, em suas questões, pensamentos, ritos, e mesmo que vários deles me considerem uma aberração à luz de suas doutrinas, acredito que caso as circunstâncias de minha vida fossem outras eu poderia crer no que eles creem, defender o que defendem e ser como são. Por sinal, mesmo estando satisfeito com o que sou e sem ter qualquer saudade de minha antiga fé, não reservo qualquer desprezo ao teísmo ou aos teístas, residindo nesse reconhecimento que tenho com eles minha desconfiança quanto à condenação da Teologia, uma vez que condená-la como um simples resquício dos erros da antiguidade era, para mim, considerá-la como uma produção cultural inferior inconsciente dessa condição, o que, indiretamente, inferiorizava também os teístas que a produziam. Seria como afirmar que todos eles estariam num mesmo navio que eu, ateu informado, saberia estar furado… Um pensamento arrogante que não posso aceitar.
De minha simpatia com o teísmo acompanhada da recusa de assumir tal posição, seguiam-se algumas dúvidas: como se apropriar de um campo de estudo cujas verdades concorriam com as minhas? Como, sem jogar a religião fora e sem também adotá-la, eu poderia me apropriar do mundo religioso? São questões para as quais eu não tinha uma boa resposta e que mantive guardadas até encontrar o livro que abordarei hoje. Acredito serno sentido de fornecer orientações a respeito de como estudar o universo da fé, sem, contudo, defender as supostas verdades contidas nele, que o livro de Osvaldo Luiz Ribeiro teve muito a me dizer e, espero, também tenha aos leitores daqui. Passei mais ou menos um mês pensando nas implicações dele e confesso que gostei deveras de cada uma delas. Tentarei explicar por quê.
Para começar
Integrando uma coleção que almeja tornar a Teologia acessível aos leigos, o livro apresenta uma espécie de tipologia da fé em que são desdobradas as maneiras pelas quais ela se manifesta e é vivida entre as pessoas, consistindo, então, num mapeamento do assunto e não na apologia de um tipo predileto de fé: “Não é que haja uma fé verdadeira, diante da qual as outras sejam falsas; não é que haja uma fé boa, enquanto as outras sejam ruins. Cada tipo de fé responde a uma instância e a uma dimensão da vida” (pág.15). Tal intenção limita bastante o aprofundamento dispensado a cada ponto, de modo que, por detrás de muitas passagens, percebemos diversos abismos dos quais o autor desvia a fim de manter a dosagem certa de complexidade sem chatear o leitor medianamente interessado no tema. Numa obra oferecida aos leigos é compreensível que seja assim, mas isso não deixa de criar mais dúvidas que respostas no leitor mais interessado ao tornar as questões propostas mais interessantes que aquelas que foram respondidas. Confesso que antes mesmo da metade do livro eu já estava mais atento à concepção religiosa do autor que sustentava a base de seu discurso, que nas maneiras pelas quais a fé era apresentada e desenvolvida em todo o livro, por isso, iniciarei esta resenhasugerindo uma precaução: por se relacionar profundamente com minhas próprias experiências e por analisar um livro que, depois de refletido, integrou meu próprio ponto de vista sobre a religião, esta resenha deveria ser lida com um bom grau de desconfiança. Ela versa sobre um assunto que tem toda a minha empolgação e, justamente por isso, também todos aqueles vícios de quando amamos uma coisa e ignoremos os seus problemas.
Apesar disso, eu ficaria desapontado se recebesse críticas que fossem meras afirmações de teologias contrárias, então, proponho um pacto entre mim e vocês: não decepcionemos um ao outro; façamos o nosso melhor.
Por fim, embora o meu interesse esteja mais relacionado à filosofia da religião que aos diferentes tipos de fé expostos na obra, o livro não segue a ordem dos pressupostos filosóficos do autor e nem os aborda muitoextensamente. Sua argumentação segue outro critério e objetivo, apresentando as formas de fé na medida em que as formas antecedentes possibilitam a melhor compreensão das subsequentes e tem seu significado expandido nelas. O livro começa tratando da fé como ensino (ou doutrina), passa para a fé como encontro, encanto e entrega, de modo que há uma ordem mais ou menos nítida que leva o leitor da primeira à última. Para a finalidade desta resenha, entretanto, eu desconsiderarei completamente essa ordem e tentarei fazer aqui uma exposição do livro a partir da filosofia da religião contida nele e não propriamente na ordem do texto, tendo por fim tornar mais nítidos os motivos pelos quais o autor acredita naquilo que acredita e, através disso, esclarecer sua apresentação dos tipos de fé.
Saltos em direção ao Sagrado
Parece-me que no contexto do livro a grande questão da Teologia comece na experiência religiosa que o autor denominará fé como encontro, que consiste naquelas circunstâncias em que somos perpassados por algo que ultrapassa tudo o que conhecemos a respeito do mundo, ou seja, quando vivemos o que comumente é denominado experiência religiosa e atribuímos sua causa a algo exterior a nós. Como bem sabemos, esse “algo” recebe muitos nomes em diversas tradições religiosas e aqui adotarei a mesma designação que dada pelo autor: Sagrado.
Tradicionalmente, embora entendamos o Sagrado como transcendente ao mundo e a revelar sua presença somente segundo seu próprio querer, na concepção de Osvaldo, nosso encontro com ele ocorre em condições humanizantes que o transformam de acordo com a nossa capacidade perceptiva, quer dizer, o que retemos do Sagrado para formular juízos a seu respeito são as memórias que temos dele, nossas percepções repletas de sentimentos tão pessoais que são difíceis até mesmo de converter em linguagem. O Sagrado não vem a nós segundo nossa vontade e tampouco pode ser mantido cativo, retemos dele apenas saudade e lembrança. Comoentão explicar ou descrever aquilo que sentimos e converter nossa experiência em linguagem? Parece que adespeito da tremenda impressão que a fé como encontro nos cause, temos grande dificuldade em supor qualquer coisa a respeito dela só com base nela mesma, e, ao mesmo tempo em que julgamos que o Sagradonos transcenda em absoluto, sendo completamente diferente de qualquer coisa que tenhamos experimentado na vida, só dispomos de nossas percepções pobres, de nossos conceitos minguados para tentar fixá-lo, que justamente por serem tão mundanos, não conseguem alcançá-lo. A consequência disso será que, embora euviva profundamente minha própria fé como encontro, não tenho certeza se outros a vivem da mesma maneira que eu; posso somente intercambiar minhas impressões a respeito dela e julgar que eles vivam experiências semelhantes.
Quando conhecemos as maneiras pelas quais outras pessoas vivenciam e narram seus próprios encontros, no entanto, percebemos que há diferentes maneiras de dizer o que eles significam e qual seria a causa que os produz: alguns não precisam do conceito de deus, outros o formulam de maneiras diferentes, alguns rezam para espíritos, outros nem sabem rezar. Parece que, embora o encontro possa atingir muitos de nós, seu significado varia de cultura para cultura, de pessoa para pessoa, conforme os meios disponíveis. Assim, cada povo constrói sua fé como doutrina (ou ensino) por seus próprios esforços e sabedoria, supondo que o Sagrado seja deste ou daquele jeito e nomeando suas experiências de maneiras que outras culturas, inclusive, considerariam falsas, e aí está o desacordo entre elas: um crê numa coisa, outro em outra, apesar disso, ambos concordam que um deles tem razão e o outro não.
Para Osvaldo tal impasse é importantíssimo e pode ser aprofundado no seguinte sentido: se o Sagrado só vem a nós dentro da condição humanizante de cada um, inacessível aos demais, e se, além disso, apenas dizemos o que ele é na medida de nossos próprios recursos, então, como formular um critério para julgar qual doutrina o expressaria melhor? Se o Sagrado falasse por si mesmo teríamos algo a que nos agarrar, contudo, ao que sabemos, cada cultura o constrói conforme seu próprio espelho, preferindo aqueles reflexos mais parecidos consigo. Poderíamos, inclusive, radicalizar tal questão e nos perguntar se não estaríamos numa espécie de delírio coletivo, a construir mitologias às cegas com base em meros fenômenos psicológicos, em suma, inquirir: há mesmo um Sagrado com o qual pensamos nos relacionar ou há somente os deuses como símbolos culturais,ou seja, Odin, Poseidon, Mavutsinim e tantos outros? Considerada em si mesma a fé como encontro não nos dá tais respostas, mas meramente nos remete à nossa percepção, memória e vivência. Por conseguinte, caso queiramos dar um salto da experiência pessoal para uma resposta absoluta, isto é, caso queiramos dizer que aquilo que vivenciamos ultrapassa nossa própria condição, sendo extra-humano, transcendental e todo o maiscom que sonharam as religiões, como poderemos justificá-lo? Com discursos humanos? Com critérios baseados na cultura, falíveis e passageiros como ela? Saltar do encontro para uma doutrina que o explique (mesmo que seja para dizer que ela é apenas um delírio da carne e nada tem de Sagrado, como desejam vários ateus), implica que o próprio sujeito o queira, que ele mesmo preencha sua experiência com os significados que julgar adequados e que serão retirados da cultura ou formulados a partir dela. O impulso que leva o ser humano do encontro à doutrina requer muito, muito empenho, e não é deus quem salta mas os seres humanos, por suas próprias pernas.
Se o “salto” do encontro para certa concepção de mundo baseada nele é voluntário, é também profundamente natural. Criamos, todos nós, a todo o tempo, doutrinas que significam a realidade de acordo com nossas experiências e saberes. Aliás, quem não se recorda do último parágrafo de Caetés? Graciliano, não sei se sabem, foi um teólogo nato, disse: “Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo. Uma estrela no céu, algumas mulheres na terra…”. Assim, a pergunta sobre qual concepção de mundo valeria mais que a outra, qual expressaria melhor a verdade e deveria ser, necessariamente, adotada, é completamente descabida. Qual deus é verdadeiro? Que representação do deus verdadeiro é verdadeira? Qual seria o critério para reconhecer a representação verdadeira do deus verdadeiro? Impossível saber. Talvez o Sagrado esteja por aí e (supomos) ele provavelmente está, todavia, nossos olhos que julgam vê-lo também o corrompem, nossa memória que julga retê-lo também o distorce, de modo que, gradativamente, ele será lembrado de um modo cada vez menos parecido consigo mesmo e cada vez mais parecidas conosco, tendo nossas digitais e nossas doenças marcadas sobre si. Os deuses que construímos para significar nossas vidas tem a mesma dimensão delas, adotando inclusive os nossos preconceitos, nossas virtudes, condenando ou absolvendo as pessoas de modo semelhante ao nosso: eles odeiam nossos inimigos, amam nossos semelhantes e, por uma sorte tremenda, consideram-nos criaturas adoráveis que adorariam imortalizar – vejam só! Criadores curiosamente semelhantes à criatura, divindades com a exata medida de nossa humanidade.
Bem, imagino que vocês já tenham antecipado certas conclusões. Vejamos: se não podemos ter certeza se o encontro com o Sagrado corresponde a algo mais que uma experiência pessoal, se as várias doutrinas que o explicam são conflitantes entre si, então só nos resta perguntar, afinal, o Sagrado existe? Seríamos nós algo mais que pequenos criadores, criando e recriando ao longo da vida nossas pequenas criaturas que, por uma estranha ironia, escolhemos (escolhemos?) cultuar? Osvaldo crê que sim e salta nessa direção sem esperar ser seguido, sem acreditar que seja possível estender uma ponte entre o lado de cá e o lado de lá. Ele contempla o abismo, teme e hesita, como todos nós; por fim, sorri e salta com medo e com fé: que seja o que deus quiser caso exista um deus que queira alguma coisa. Ele vive a fé como entrega e até permite a si mesmo algum otimismo diante da vida, embora enxergue, tanto quanto qualquer um, o abismo que ela é. Osvaldo o vê mas tem fé: abre o jornal de manhã, olha a moça bonita da previsão do tempo, beija seus filhos, confia em deus e vive sua vida como todos nós, cumprindo dignamente sua pequena rotina de existir.
Meus delírios insinuam que num mundo ideal Osvaldo seria forte candidato ao papado, conquanto eu tenha dúvidas se papas caberiam ou não num mundo ideal. Aqui no mundo real, no entanto, ele apenas salta.Contenta-se em ser outra pessoa que salta. Não devemos segui-lo, é verdade, mas podemos aprender com ele antes de darmos nossos próprios saltos.
A teologia em silêncio
Por meio dessa formulação toda Osvaldo constrói sua teologia do silêncio, retirando dela consequências muito interessantes. A principal delas talvez seja entendimento do salto da experiência à doutrina como uma escolha baseada em cultura, o que implicará que toda religião deva ser entendida, por princípio, como construção cultural. Nenhuma delas pode provar ser verdadeira na base. Com efeito, a proposta do teólogo se liga menos a apologia de uma doutrina religiosa específica e mais a um entendimento de que toda doutrina constitui um salto que, ao pretender ser a única verdadeira, recusa a consciência disso.
Bem dizendo, doutrinas não querem ser saltos; querem ser pontes. Cada uma delas afirma ser a única passagem possível para o outro lado e que os pedágios ao longo do caminho foram ordenados pelo próprio Senhor. A esse respeito o autor será bastante reticente, desconfiando de racionalizações da fé que pretendam nos ligar ao Sagrado pela simples adoção da perspectiva correta ao seu respeito. Sua proposta implica que não devamos fazer Teologia a partir de pressupostos religiosos mas culturais, quer dizer, discutir a Bíblia, o Alcorão, enfim, estudar livros religiosos e defender posições a respeito do que existe ali, não implica aceitar nada que esteja escrito neles, porém apenas buscar compreender o que é dito ali no contexto em que foi dito. Deste modo, as ferramentas intelectuais do teólogo precisam estar ancoradas em procedimentos intelectuais universalmente reconhecidos, como a Filosofia, a História, as Ciências e assim por diante; ao passo que a apologia das doutrinas deve ficar do lado de fora da Teologia, reservada ao âmbito da privacidade de cada um. As apologias pretendem tornar as doutrinas a voz de deus, ao que Osvaldo sugere que calemos e falemos somente em nosso próprio nome, mesmo que seja a respeito de Deus, mas neste caso será: “do “Deus” conforme eu concebo, ou da Bíblia (…) como eu a entendo” (pág.55). O silêncio aqui é a recusa de qualquer prerrogativa a um discurso doutrinário prevalecente sobre os demais. As teologias devem falar, porém por si mesmas, não por Deus.
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Aqui convém fazer certas colocações sobre as teologias. Para Osvaldo, elas não são a voz do Sagrado, porém sacralizam certas coisas no lugar dele para que assim possam se apresentar como seus representantes. Pois bem, que coisas seriam essas?
Partindo da divisão entre fé como encontro e fé como doutrina, o autor afirma que os evangélicos, em particular, possuem duas tradições importantes e ambas incorreriam no risco de converter alguma coisa emSagrado e assim se apresentar também como sagrada. Uma dessas linhas seria a tradição de fé doutrinária: “centrada e caracterizada na verdade; na doutrina” (pág.44), e que diz respeito a ordenação racional do Sagrado e sua transformação em ritos, símbolos, discursos, em suma, em doutrina, funcionando como uma espécie de mapa que os humanos traçam para si a fim de que saibam onde estão e qual é o caminho que leva à divindade. Ela carregaria consigo um risco eminente: aqueles que a seguem podem ser levados a crer que o mapa é completamente verdadeiro, que o caminho desenhado é único possível e que esse objeto é digno de ser posto num altar, em outras palavras, a tradição doutrinária corre o risco de converter a própria doutrina em Sagrado: “O cristão corre o risco de achar que Deus se mostra e se explica com papel e tinta, com doutrina.” (pág.44). Em casos extremos ela poderá até mesmo (e que Deus nos acuda nesses casos) querer impor sua ortodoxia ao mundo à força.
Para o autor, grande parte das divisões do cristianismo surgem em função dessa divinação das doutrinas, sendo assim, os excessos doutrinários produziriam uma espécie de estafa nos fieis que daria origem à tradição carismática. Esta, por sua vez, estaria fundada na fé como encontro e se vincularia aos sentimentos, às fortes sensações, ao extraordinário que arrebata aquele que sente. Seu risco seria o mesmo da linha doutrinária, ou seja, de encontrar um substituto mundano para o Sagrado, só que neste caso não seria não a doutrina mas a própria experiência. O carismático pode, primeiramente, identificar sua experiência ao Sagrado, dizendo que viu o próprio Deus, que encontrou com Jesus ou o anjo Gabriel, e, depois disso, criar uma distinção entre si e os demais baseada na vivência dessa experiência. Ele acreditará que aqueles que viveram uma experiência como a sua tem Deus, os demais não. O que foi vivenciado por ele é elevado à categoria de Sagrado, sendo então buscado e adulado como se fosse o próprio Sagrado: “O carismático prende o sagrado em torno das experiências litúrgicas, devocionais, espirituais; define-o através das emoções, das sensações, dos sentimentos, dos êxtases” (pág.47).
Assim, tanto uma tradição quanto a outra podem incorrer no risco de, cada qual a sua maneira, substituir o Sagrado por alguma outra coisa, seja pela doutrina, seja pela experiência. Acredito que entender tal divisão entre linhas importe tanto para quem acredita nas religiões a adota suas perspectivas e quererá evitar seus riscos de substituições, quanto para quem está fora delas desejando entender quais faces de deus elas apresentam a eles e, ainda mais, como os fieis se radicalizam dentro da própria religião ao adotar uma delas.
Um caminho para a Teologia
Ao mesmo tempo em que defende uma posição crítica em relação as religiões, convém ressaltar, Osvaldo está filiado ao cristianismo batista – muito secularizado, notoriamente secularizado, mas cristianismo batista; não ateísmo, não anti-teísmo. Portanto, a própria fé que o teólogo adota também entra na dinâmica das religiões como outra construção humana que busca tocar o Sagrado, logo, também será entendida como uma produção cultural.
Quando afirmo isso quero ressaltar um aspecto importante da teologia do silêncio, que é o fato de que ela não implica em descrença, mas somente no entendimento da religião como um discurso eminentemente humano. É um princípio bem simples: Deus pode estar lá, Osvaldo acredita que esteja, porém ele só pode acreditar; do mesmo modo, Deus pode estar lá, eu acredito que não esteja, mas só posso acreditar. Defender nossa fé sobre as demais, como verdade fundamental, seria algo além da razoabilidade.
Suponho que embora tal posição possa indispor aqueles que sintam necessidade de defender sua própria doutrina, há pelo menos duas vantagens nela. Primeiramente, permitir um diálogo imediato entre cristãos e não-cristãos (sejam ateus, islamistas, ou qualquer outro) através do fim da pretensão doutrinária. Tal proposta permite que aprendamos um com o outro segundo o interesse que tivermos entre nós, sem que haja uma disputa pela verdade que nos coloque em lados opostos. Outra vantagem seria permitir que a Teologia dialogasse com as Humanidades a partir dos próprios parâmetros de razão que elas estabelecem, uma vez que tendo a pretensão doutrinária da Teologia desaparecido, toda a religião pode ser analisada dentro dos mesmos parâmetros que outras produções culturais.
Pessoalmente, considero essa posição muito útil para a Teologia, sobretudo, agora que ela começa a fazer parte mais assiduamente das universidades brasileiras graças às novas regras do MEC. Creio que se for do interesse dos teólogos não só que eles se sirvam das Humanidades (como, aliás, sempre fizeram), mas que também as humanidades se sirvam da Teologia e a reconheçam como um saber que deva estar ao seu lado, conversar com os não-iniciados através de um discurso que não requeira a aceitação de pressupostos religiosos é um bom caminho. A concepção de Osvaldo permite que a Teologia possa ser apropriada pelas Humanidades sem qualquer preconceito, pois não a leremos esperando encontrar ali uma apologia de uma religião específica e teremos toda a liberdade para problematizar quaisquer religiões que quisermos, ela viabiliza que mesmo uma pessoa que não tenha concordância com o autor no tocante às questões doutrinárias, possa concordar com ele em termos de teologia e apreciar o que ele diz. Uma consequência que torna essa teologia naturalmente aberta ao diálogo – e à críticas, é claro – cujo saldo da discussão não implica na afirmação de uma concepção religiosa sobre outra. Com isso, Osvaldo pode manter sua doutrina (batista) ao mesmo tempo em que a discute, em que a problematiza junto àqueles que não a professam, permitindo que o interlocutor faça o mesmo. Se ao fim do debate ambos não mudarem suas ideias, como frequentemente acontece, ao menos não se odiarão e não terão motivos para que sejam um contra o outro.
Sou ateu, entretanto Osvaldo não quer me converter ou ser contra mim, com isso, sou desarmado por sua amizade e passo a escutá-lo sem resistências, a querer ver mais a vida e o mundo segundo seus olhos. Parece-me que seja um espetáculo lindo. Talvez um dia possamos nos encontrar, dividir um vinho ou uma pizza, conversar sobre como Deus ou sua ausência muda os nossos destinos e nos leva a momentos, às vezes, sublimes, às vezes, solitários. Se isso ocorrer, tenho certeza, continuaremos, tanto eu quanto ele, ateu e cristão, distintos, entretanto, também ateu e cristão iguais na escolha de um ser pelo outro, não contra. Com efeito, espero sinceramente que Osvaldo jamais se converta, que não seja descrente como eu; prefiro-o diferente, estranho, a pensar coisas que nunca passariam pela minha mente, a olhar coisas em que meu olhar não se demoraria; preciso de quem me lembre que o mundo não precisa de mim, que minhas ideias e sentimentos são passageiros e tolos, que sou poeira levada pelo vento e, por isso, não devo negar valor ao outro se for para colocá-lo sobre mim.
Amém.
PS: por não saber exatamente em que parte do texto colocar, não tratei de uma das quatro formas de fé, que é a fé como encanto, aquela que tenta demover a divindade para que ela atenda um desejo ou necessidade do fiel. Ela parte, portanto, de uma incompletude por parte daquele que a tem, que busca se fazer completa a partir da satisfação de alguma necessidade, sendo uma espécie de fé como falta, como desejo de algo que se expressa numa oração, num rito ou coisa semelhante. Osvaldo não explora muito os problemas desse tipo de fé, embora faça alusão a eles. Sendo assim, eu gostaria de recomendar um texto excelente do filósofo Luiz Felipe Pondé que explora como a fé por encanto pode reduzir deus a uma espécie de gênio da lâmpada, que está lá para ser manipulado e realizar os desejos do fiel, chama-se Um cético na cabala. Procurem no Google e sejam felizes.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO