Você pode chamar do que quiser - hermenêutica, interpretação de textos, exegese, semiótica, análise do discurso, chame do que quiser: é uma operação delicada, difícil, inglória...
Na aula de Análise do Discurso Religioso Não-canônico, que trato como exercícios público/críticos de AD, nos debruçamos sobre a letra O Trem das 7, de Raul Seixas.
A regra é: chegar a uma interpretação plausível. Plausível é uma interpretação que consiga sobreviver à crítica-prova de todas as palavras do texto, de todas as sintaxes e do conjunto da letra. Se, com base em uma palavra, você propõe a leitura X, mas há outras palavras que não funcionam bem aí, então a leitura X não é plausível.
Na condição de professor, apresentei minha proposta - salvo melhor juízo, penso que ela sobreviva bem aos testes: funciona para todas as palavras, para todas as sintaxes e para o conjunto da letra. Eu sugeri que Raul Seixas tenha respondido, criticamente, à pregação evangélica da década de 70, pregação essa baseada na volta de Jesus para buscar os seus e condenar os outros, com imagens extraídas da iconografia nuclear, própria das revistas adventistas, por exemplo. Era época de Selva de Pedra, Mario Lago e Francisco Cuoco tocavam o bumbo na praça e cantava que passaria de mil, mas não de dois mil...
Eu sugeria que a letra de Raul, então, se apropria da linguagem apocalíptica e da mensagem evangélica das praças e reage a ela de modo irônico e a partir do arsenal de sua própria tradição místico-filosófica - no final, Deus virá abraçado ao Mal, num romance astral... Quem vai sorri? Quem vai chorar? Quem vai partir? Quem vai ficar?, ele perguntava ao pregador...
Pois bem. Buscou-se o Oráculo a ver se a interpretação do professor fazia sentido e encontrou-se uma dissertação de mestrado. Nela, em sete páginas, se lia a letra de Raul Seixas como uma leitura de Apocalipse: Raul lera Apocalipse e transformara o livro em música - quem vai chorar?, quem var sorrir? As nuvens de mil megatons estão lá, diz o mestrando - agora mestre - na visão de João...
Perguntou-se-me, então, se não fazia sentido...
Situação constrangedora, porque a única forma de você agir nesses casos é sendo honesto. E, então, eu perguntei. Meu caro aluno, você diria que Apocalipse termina dizendo que, no final, Deus vem abraçado com o Mal?
Não...
Então, meu amigo, não faz nenhum, absolutamente nenhum sentido dizer que Raul Seixas transcreveu Apocalipse em O Trem das 7...
Numa situação dessas, dá a impressão de que você quer impôr sua leitura. Não é. Tanto faz, para mim, se alguém achar que estou certo... O que me interessa é encontrar leituras que eu possa ler e, de fato, atestar que funcionam sobre o texto interpretado.
Coisa rara. Na maioria esmagadora das vezes, a "interpretação" é horrível, não se sustenta sobre a totalidade do espaço textual, agarra-se a uma ou outra figura, e vamos que vamos. Uma negligência hermenêutica terrível...
Mas o trabalho foi aprovado, sem correções...
Se o mestrado estava errado, contaminou a todos naquela defesa...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. não usei esse texto na aula, nem o indiquei aos alunos, mas, se desejar, pode ler minha leitura de O Trem das 7 aqui.
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