1. 1 Re 22,21 está traduzido errado em todas as versões evangélicas e protestantes, no vernáculo, que consultei - e, arrisco dizer, em todas as demais. Só as versões católicas eventualmente a corrigem, mas nem todas: a Bíblia de Jerusalém está correta, a Peregrino, errada.
2. Não se trata, sob nenhuma hipótese, de "um espírito", mas de "o espírito". Trata-se de haruah, "o espírito", espécie de secretário de Yahweh nos termos da teologia judaica da época monárquica.
3. Pois bem, fui checar a Bíblia Hebraica, da Sefer, traduzida, consta, por David Gorodovits e Jairo Fridlin e, para minha triste surpresa, está errado - "um espírito". Que pena...
4. No caso evangélico, entendo que a idolatria da doutrina force os tradutores a dar um jeitinho na Bíblia - é o percado crente, a hipocrisia do dogma disfarçado em amor às Escrituras. Mas não saberia dizer por que meios dois judeus traduzem haruah por "um espírito"...
5. Seja como for, me faz lembrar um episódio que não esqueço nunca, porque me marcou emocionalmente.
6. Era minha primeira aula de exegese em mestrado (ainda que livre). O professor e mais quatro alunos. Ele inventou de passar toda a primeira aula lendo o texto de Rute, em hebraico. Cada aluno deveria ler, publicamente, um capítulo. Eu não sabia ler direito, foi muito constrangedor, muito. Um dos alunos havia morado em Israel, lia com fluência, mas eu...
7. Quando cheguei em casa, chorei, e disse para Bel que não iria mais. Ela me fez levantar a cabeça e seguir em frente - mesmo tendo sido assaltado, no ônibus, naquele dia, obedeci a ordem de Bel - seja homem!
8. Pois bem, voltei. Coube-me traduzir Rute 3. Quando traduzi, dei-me conta de que os versos 3, 7 e 14 estão traduzidos errado: Rute não descobre os pés de Boaz e se deita, ela se descobre e deita aos pés de Boaz - ela se despe, como Noé, cuja nudez é vista pelo infeliz, coitado, do Cão - quer, por isso, levará o energúmeno do pastor-político a dizer que os pretos são filhos de Cão - com o que se justifica a escravidão, canalhas brancos cristãos...
9. Quando li meu trabalho, a turma entrou em alvoroço - inclusive o professor. Por duas horas, tentaram desfazer meu trabalho, pegaram todos os dicionários, comentários e léxicos da biblioteca do Seminário do Sul mas, ao fim, tiveram de dar o braço a torcer.
10. Contrariado, porque minha tradução modificava as Bíblias "homologadas" pelo professor, disse à turma que minha tradução era "possível". Eu ri, calado. Possível, não, meu caro senhor - é a correta. A de Almeida, sim, até é possível, mas com a condição de traduzir ora de um jeito e ora de outro - no mesmo capítulo, porque, no fim da história, Rute é descoberta deitada aos pés de Boaz, e esse "aos pés" é a mesma expressão que, antes, Almeida traduz por os pés...
11. Mas eu lavei a alma: de risos diante de uma leitura gaguejante, na primeira aula, a rendição diante de uma tradução feita com vagar, atenção, crítica, em lugar de estar a serviço de editoras e dogmas.
12. Moral da história: não basta saber hebraico - melhor saber menos, mas traduzir melhor, do que saber tudo, e traduzir errado.
13. A menos que você estude hebraico porque ama a língua, o objetivo final é a tradução dos textos - e se a tradução é equivocada, pôs-se tudo a perder...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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