"_ Necessidade. - Julga-se que a necessidade cria a coisa: mas é a coisa, na maior parte das vezes, que cria a necessidade" (Nietzsche, A Gaia Ciência, 205).
1. Não é a quem entende a vocação como enriquecimento, a vocação como um carma de ser divino e de ter mortais a lamber-lhe os pés, a vocação como um pote de douradas moedas do diabo, não é a esses que escrevo.
2. Escrevo, aqui e agora, àqueles que acreditam que a vocação é serviço, e que, no fundo do seu coração, dentro de seu peito, sinceramente, acreditam que a vocação é servir...
3. Cuidado. O diabo é mais astuto do que nossa sinceridade...
4. Cria-se um jogo, um tabuleiro, umas peças, umas regras. Cria-se uma mesa. O jogo, diz as regras, joga-se assim. A mesa fica aqui e aqui. A peça, move-se assim. Inventa-se o jogo...
5. O jogo, depois, diz-se que foi Deus que fez. Do rei ao peão, as 64 casas, o reloginho de bater e travar a contagem, o livro de aberturas, o gambito. Tudo divino.
6. Aí, inventado o jogo e divinizado o tabuleiro, é hora de se criarem as retóricas.
7. "Serviço" é a retórica mais desgastada da religião. Não há outra. Os maiores canalhas da fé estão, segundo eles, a serviço de Deus e do povo...
8. Porque o serviço se deixa propor à luz do jogo, nas regras.
9. Não são necessidades reais do povo - são necessidades construídas, inventadas, alimentadas com cânticos e leituras alegóricas. E o "servo" acredita que está a servir pessoas, quando, para todos os efeitos, serve a um jogo - nada mais do que um jogo.
10. É preciso, pois, que quem se pretenda servo de pessoas, pergunte-se, honestamente, que necessidades reais são as que precisam ser atendidas. Inventar necessidades e se fazer de "servo" para a satisfação dessas necessidades é uma idealização sutil, que, ao cabo, revela-se tão desumana quanto a dos canalhas da fé.
11. É preciso, pois, ser duro consigo mesmo, olhar no espelho e despir-se da vocação ao e no jogo, e engajar-se em serviços que, de fato, sejam úteis.
12. Quais são? Não me diz respeito. O povo real está lá fora. É ele, em sua vida real, e, a despeito muitas vezes de sua própria auto-compreensão, é dali que deve sair o diagnóstico de serviço.
13. Não se engane: "servir" é uma grande vaidade... É preciso reduzir o serviço ao que ele é e fazer dele o que ele deve ser, sem pantomimas, sem purpurina, sem holofotes - e da forma como cada pessoa viva concreta precisa.
14. Mistificações na forma de serviço são tão cínicas quanto louvores em campanhas de terceiros dízimos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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