domingo, 12 de agosto de 2012

(2012/627) Sobre religião, pesquisa e verdade: da (quase?) impossibilidade evangélica


1. Você pode ser cientista e não ser religioso. Terá uma idéia empática do que é a cabeça do religioso. Plenamente possível. O teólogo tenderá a dizer que o cientista não pode saber como é a experiência do religioso - mas não estamos falando de experiência, estamos falando de visão de mundo e prática existencial perceptível nessas condições de mundo. Um antropólogo "sabe" como a cabeça de um religioso funciona: não precisa sentir seus sentimentos.

2. Por outro lado, você pode ser um religioso e não ser cientista. Se monoteísta e confessional, então, (quase?) nenhuma condição de compreender o cientista. Se a religião não tem força coercitiva exclusivista, penso ser mais fácil. Para as monoteístas dogmáticas, a situação é muito grave.

3. Penso que eu tenho uma vantagem histórica. Antes de tornar-me um pesquisador, alguém que olha a religião "desde fora", vivi-a por dentro, como um conservador fundamentalista. Tive meus quatro ou cinco anos de "fundamentalismo" - de corte batista, ainda por cima... Sei como a cabeça de um religioso funciona, e sei como a cabeça de um doutrinário-dogmático funciona: tive minha fase de dois anos de dispensacionalista clássico. Acreditem: excetuando-se a experiência próximo-xamânica carismática, todas as outras eu conheço, se estamos falando das experiências evangélicas brasileiras. Entreguei minha consciências a elas, durante cinco anos - pelo menos...

4. Os religiosos que me ouvem ou leem devem se lembrar que eu carrego dentro de mim as duas experiências - sei exatamente como funciona a cabeça do religioso (acreditem, sei!), e sei exatamente como "deve" funcionar a do pesquisador, que é o que me tornei por natural expressão de minha interioridade.

5. Quando eu digo que mito nenhum é capaz de ajudar você a aproximar-se da realidade para "saber" como ela é, é porque estou dizendo que a função do mito é dizer a você - sem checar - o que o mito diz que o real é. O mito judeu é o modo judeu de ver o mundo. Ele é diferente do mito islâmico, que é o modo mítico do Islã ver o mundo. Que é diferente do mito cristão e do modo mítico cristão de ver o mundo. O que eles têm de igual não corresponde ao mundo, mas ao fato de que saíram um de dentro do outro.

6. Para aproximar-se do real, você deve, antes de mais nada, admitir que tudo que você acha que sabe sobre ele pode estar errado. Você só saberá depois de pôr seu pensamento em cheque e ir para o mundo, testá-lo, seja empiricamente, seja racionalmente, submetendo-o aos mais severos regimes de confrontação. Mas fazer isso, para a fé, é, já, pecar, apostatar. Mentem para você, dizendo que a dúvida é o fim da fé, logo da verdade, quando ela é a condição para o início da caminhada. A dúvida é o fim do dogma, isso sim... Da verdade ela é é a condição.

7. Um religioso, meus amigos, um cristão, e, lamento dizer, um evangélico - enquanto evangélico e na condição de evangélico, sujeitando-se ao regime evangélico e de pé sobre o princípio evangélico da verdade dogmática, ensinada em catequese sem possibilidade de dúvida, simplesmente está proibido por sua própria consciência, por força da educação que recebe e do tipo de fé que tem, de assumir a possibilidade de estar errado. Ele sempre está certo - até de noite, quando põe a cabeça sobre o travesseiro, ou quando olha no espelho e, principalmente, quando lê a Bíblia por meio da doutrina, confirmação fundamental e subjetiva de seu estado de verdade...

8. Por isso, Aigner, não há nenhuma possibilidade adequada de pôr ciência/pesquisa ao lado de religião e mito como dois modelos equivalentes de aproximação ao real. Nenhuma... 

9. Salvo, claro, quando estamos operando justamente sob aquele regime que aqui classifico como impeditivo da suspensão da certeza da auto-verdade...

10. Religião pode dar conforto, como remédios alopáticos dão - é a melhor função dela. Mas "verdade" é algo absolutamente pernicioso para a religião - é como o sal sobre a lesma, como o Sol sobre o orvalho.

11. Não, a verdade não é a única coisa importante da vida. Mas não é, nem de longe, a mesma coisa que o conteúdo dos mitos religiosos.

12. E Pilatos, Aigner, Pilatos não tem nada a ver com essa história...

13. Para encerrar, a declaração de que aproximações mitológicas sejam ineficientes para a aproximação ao real, se o processo é de entendê-lo, isso não significa que quem opere sob o regime teórico-metodológico da ciência seja o novo religioso - que tenha a "verdade" na mão. Estamos falando de processos e de condições de verdade... E, nesse sentido, se você quer ir para o céu, religião, se quer saber o que o mundo é, ciência.

14. Salvo melhor juízo, porque sei que, dizendo-o, além de aborrecer espíritos religiosos, aborreço almas pós-modernas... Que, no fundo, é teologia secularizada: é Platão e Buda abraçados...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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