sexta-feira, 16 de março de 2012

(2012/288) "Fundamentalismo" - um capítulo de "A Linguagem do Império", de Domenico Losurdo

1. Há textos não-fundamentalistas na Bíblia. Mas a maioria é fundamentalista - sejam os textos do Antigo Testamento, sejam os textos do Novo Testamento. Quando quaisquer dos muitos Cristianismos precisam de "bases sólidas", acham-nas liberalmente na coleção de textos das Escrituras - selecionando-as, claro, segundo seus respectivos interesses dogmáticos. Todavia, há nas Escrituras textos contra-fundamentalistas também. São poucos, mas há. Textos impressionantemente lúcidos. Extraordinariamente críticos.

2. Eram textos de resistência, o que significa que eram escritos por grupos críticos em relação aos centros de poder político - as mais das vezes, sacerdotais. Uma vez que não detinham poder de reação no mesmo nível do poder detido pelos centros políticos, reagiam no campo da transgressão das ideias, no campo retórico. Imagino-os à volta de fogueiras, do forno, à noite, após o trabalho, lendo as peças de crítica contra o poder central.

3. Cito dois casos. Amós não chega a negar o "êxodo". Ele o (re)conhece. Mas trata-o como um movimento à semelhança de outros, que igualmente cita e (re)conhece. Amós argumenta: Deus tirou os israelitas do Egito, mas igualmente, tirou os filisteus de Caftor e os arameus de Qir. E arremata, como se fora Yahweh a falar: "vocês não são para mim melhores do que os etíopes" (Am 9,7). Povo eleito? Que nada. Apenas mais um sob os cuidados do deus.

4. Outro texto é Ex 33,18-23. Um texto contra-sacerdotal. Nega-se ao sacerdote a prerrogativa de ver a glória/face de Yahweh e, por meio disso, deter as prerrogativas de dispensar as bondades do deus, caminhar à frente do povo e decidir quem é e quem não é digno da misericórdia da divindade. O sujeito - anônimo - é colocado insistentemente no meio do povo, atrás de Yahweh, ele sim, quem deve ir, sozinho, à frente. Um texto bastante alinhado com as teses protestantes - as teses do papel, claro (na prática, os protestantes [como os católicos] aliaram-se ao sujeito anônimo do texto: tomaram o partido sacerdotal). Que se trata de ironia, revela-o o final da narrativa: Yahweh coloca o "sujeito" no buraco da penha, tapa com a mão, e passa; depois de passar, tira a mão, e o sujeito pode, apenas, ver suas costas (literalmente, sua "parte de trás"!), mas sua face, não! As risadas cortam a noite fria do corredor palestinense...

5. Os dois textos não encontraram qualquer eco na história. O êxodo tornou-se narrativa hegemônica para a eleição de "Israel" e, na outra ponta, os sacerdotes "viram a glória de Yahweh" - assumiram todos os acessos ao sagrado. Os outros textos da Bíblia, fundamentalistas, simplesmente engoliram os textos críticos. Israel continuou a considerar-se o único "povo eleito"; mais tarde, a Igreja assumiu o posto e, recentemente os Estados Unidos da América, a "nação de Deus", tornaram-se os 144.000, a "colina santa", a mão e a boca de Deus na terra - diante de cuja tese de "religião nacional" capitularam Roma e Jerusalém, judeus e católicos. "A" nação é Deus...

6. Os textos críticos da Bíblia tornaram-se, apenas, memória de resistência - meus textos de cabeceira! Mas não têm qualquer uso, seja na liturgia, na teologia, na ética, em canto algum. Pelo contrário, são muitas vezes traduzidos de forma a descaracterizar a crítica radical - como Ex 33,18-23, sofrivelmente traduzido nas versões (fosse um curso de Hebraico e a nota não seria boa, senhores tradutores!).

7. Sobre fundamentalismo, Losurdo, meu atual historiador preferido (desbancou outro italiano, Ginzburg, meu segundo em preferência), escreveu um senhor capítulo em A Linguagem do Império - léxico da ideologia estadunidense. Trata-se do capítulo dois, "Fundamentalismo" (p. 53-96). 

8. Losurdo mapeia as diversas formas e materializações do fundamentalismo no mundo: na Europa, na Ásia, na América, nos confrontos militares, nos confrontos interculturais, retroagindo até mesmo ao movimento "zelote" judeu de há dois mil anos (p. 56-57).

9. Argumenta que fundamentalismo é fenômeno plural - fundamentalismos, e não é prerrogativa de um ou outro povo (islâmicos, por exemplo), mas característico de todo e qualquer povo, que o tem latente em sua substância, potencial, pronto à atualização histórica sempre que sob demanda (p. 57-61).

10. Além de plural é igualmente não necessariamente não-"iluminista", podendo manifestar-se mesmo entre os mais "iluminados" (p. 61-64), sendo agravado, nesse sentido, pelos desencontros provocados pelos encontros de culturas (p. 64-66). O que faz do fundamentalismo um fenômeno não exclusivamente religioso, mas político, étnico, cultural, multifacetado. É o caso, por exemplo, das guerras de independência das colônias europeias (p. 66-69), ou, a seu tempo e modo, da configuração geopolítica presente nos movimentos de integração e separatistas - o sionismo e as nações do Islã, por exemplo (p. 69-75).

11. O fundamentalismo manifesta-se, também, internamente às próprias culturas, cuja memória de identidade permanece latente e serve, muitas vezes, de catarse para o afloramento fundamentalista (p. 75-81), quando mais se contra-manifestam "gestões" político-culturais "a partir do alto" em razão de fluxos migratórios (p. 81-85), ou por ocasião de conflitos geopolíticos internos, como ocorre na Itália - sul versus norte (p. 85). Eu acrescentaria - e entre São Paulo e o Nordeste brasileiro, por exemplo, ou entre a velha "Guanabara" e o (resto do) Estado do Rio de Janeiro, da mesma forma.

12. O fundamentalismo é, pois, um fenômeno de cultura, que se reinventa e se renova (p. 86-88), ativado por choques civilizatórios e/ou pela "circulação do pensamento" (p. 88-90), vendo-se repetirem discursos reapropriados - por exemplo, o povo eleito é Israel, não, é a Igreja, não, é a nação estadunidense (p. 90-93)! A maior expressão protestante-evangélica do mundo é fundamentalista em cada manifestação - porque sua alma é fundamentalista.

13. Losurdo termina assim seu capítulo:
Quem quiser lutar a sério contra o fundamentalismo em suas diversas manifestações deve empenhar-se em reconstruir, em condições totalmente novas, uma posição capaz de conjugar a crítica do Ocidente com o reconhecimento de seus pontos altos. O enfraquecimento e a desagregação de tal posição explicam o fato de, hoje, os movimentos de resistência dos povos em condição colonial ou semicolonial tenderem a assumir sempre mais a forma de guerra de religião e de civilização. Rompido o equilíbrio entre crítica do Ocidente e herança dos seus pontos amais altos, a guerra santa do islã apresenta-se como resposta à guerra santa do Ocidente, que de modo errôneo se arvora em lugar de racionalidade leiga e antidogmática (p. 96).
14. Termino esse breve exercício de reflexão e divulgação do capítulo "Fundamentalismo", de Losurdo, com uma referência de todo triste - que não faz parte do capítulo "Soteriologia" e "Cristologia" das Teologias Sistemáticas fundamentalistas - nem das cripto-fundamentalistas (as demais).

15. Quando os sacerdotes judeus tomaram o poder em Jerusalém, há 2.500 anos, criaram legislações de interdição. Uma delas, aquela terrível e demônica, que torna imundo o sangue genital feminino - seja o menstrual, seja o puerperal. Todo macho que passe pelo sangue do parto, fica imundo sete dias. Se fêmea, o dobro do tempo (para o puerperal, cf. Lv 12; para o menstrual, cf. Lv 15).

16. Pois bem, eis a cena. "Terminados os dias da purificação deles segundo a Lei de Moisés, levaram-no para Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor, e para oferecerem em sacrifício, conforme o prescrito na Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos" (Lc 2,22-24). "Terminados os dias da purificação deles". Purificação. Deles. Maria e Jesus, impuros, imundos, por sete dias.

17. A cena é triste. Maria tem nos braços o menino de oito dias. A religião que ela aprendeu e segue desde pequena trata-a, a ela mesma, Maria, e a ele, o pequeno Jesus, como imundos, porque ambos foram tornados impuros pelo sangue do parto, sangue de mulher. Maria vai ao Templo, comparece diante do sacerdote, entrega a ele os animaizinhos, e o sacerdote os mata para que a impureza de mãe e filho não ofendam o Pai...

18. O que faz a Teologia cristã com isso? Paulo construiu sua interpretação soteriológica de Jesus com base no "cordeiro" sem mancha, sem pecado. Todavia - e é também daí que se extraiu a doutrina do "pecado original" -, todo macho e fêmea nascem imundos, sujos pelo sangue do parto. Logo, também Jesus, um pequeno macho, filho de mulher, imundo por sete dias, conforme Lucas sabe e registra. Não, nenhum capítulo das Sistemáticas vai discutir o assunto - passará ao largo. E (não li todas), se alguma chegar a discutir, será para contornar, para fingir que o texto não põe as coisas nos termos em que põe.

19. Um fundamentalismo religioso que é capaz de fazer de todos uma nação de imundos para, assim, tornar "útil" o aparelho sacerdotal. Ou de fazer de todos passageiros do trem do inferno, para tornar útil as missões - que, nesse momento, invadem os países islâmicos com a mesma insanidade das cruzadas. Soube que uma grande Junta Missionária brasileira anda a treinar missionários a "resistirem" à perseguição islâmica - porque eles vão lá, "salvá-los", e, certamente, como reação a isso, serão perseguidos. Assim, treinem-se rapazes e moças para a guerra santa. Quando os islamitas treinam seus jovens, é porque são fundamentalistas. Quando são evangélicos a fazerem o mesmo, são fiéis a Deus. São não: são fundamentalistas como todos os demais, e talvez pior.

20. O fundamentalismo catequético é eficiente. Foi tão eficiente com Maria que ela jamais pensou em questionar a fé e a doutrina e a prescrição e o rito aprendidos com a mãe e a avó, reconhecendo, iconoclasticamente, ousadamente, diante do pequeno Jesus, que nem ela nem ele eram imundos. Pelo contrário, creu nisso piamente, caminhou serena e fiel até o Templo, mostrou seu filho imundo ao sacerdote, abaixou a própria e imunda cabeça, para não ser encarado por mulher o oficial de Deus que lhes concederia a purificação do rito, entregou-lhe os animaizinhos, purificou seu filho, a si mesma, e consagrou ao Senhor seu bebê judeu - sempre conforme mandam os livros sagrados, e sempre conforme registra São Lucas.

21. Porque os livros são sagrados - mas todos os homens que os escreveram, suas mães e mulheres e os filhos delas, são imundos - e também Jesus, conforme está escrito...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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