1. Eu deveria tomar vergonha, cursar um bom curso de Letras-Hebraico, fazer um doutorado na língua, quem sabe, até, falá-la. Não fiz nada disso. Não sei se farei. Quem sabe? Talvez, um dia...
2. O Hebraico que aprendi aprendi no Seminário. Não foi grande coisa. Quando terminei, não sabia traduzir nada. Todavia, eu sabia uma coisa: se você quer estudar o Antigo Testamento, em vez de ficar repetindo doutrina, tem de traduzir você mesmo o texto.
3. Isso eu soube por mim mesmo. A depender das orientações, você acredita que uma oração e três cultos de domingo resolvem. Mentira. Resolvem nada. Enrolam você. E eu soube isso desde a primeira vez que descobri que o Antigo Testamento tinha sido escrito em Hebraico.
4. Hoje, na falta de alguém oficialmente formado na área, quebro um galho. Mas aviso aos alunos: não estamos aqui para aprender Hebraico, estamos aqui para iniciar um processo de tradução do Antigo Testamento.
5. E tem diferença? Tem, toda. Acreditem - tem! Há mestres em Hebraico (se doutores há, não sei) dos quais eu não leio um artigo, quanto menos sua tradução da Bíblia, porque o que traduzem e escrevem está à mercê de dogmas cristãos - imprestáveis (anote: imprestáveis!) para a correta compreensão do Antigo Testamento. Para se entender o Antigo Testamento, deve-se lê-lo na mesma cultura em que foi escrito, na mesma fé, no mesmo mundo.
6. Ontem, uma aula de artigo. Artigo, gente: coisa básica, bê-a-bá.
7. Comecei a aula assim. Vamos ler um versículo: 1 Re 22,21. Se qualquer Bíblia evangélica que vocês tiverem, qualquer, tiver traduzido correto, eu dou 10 para todo mundo o ano inteiro. E repeti, diante dos olhos assustados dos alunos. Dou 10 pra too mundo!
8. A essa altura eles já sabiam que, se eu estava dizendo assim, todas as versões da sala estavam erradas. Mas pontuei: Bíblias católicas não valem, porque, nesse verso, estão traduzidas corretas.
9. E lemos. Pode ler a sua, em sua casa. Se for evangélica, se for uma das que conheço, está errada, seja qual for a editora. Lá, você lerá algo assim: "e saiu um espírito"... Deveria estar "e saiu o espírito". "O", não "um". "Um espírito" é erro grosseiro. Pior - erro que sabe que é erro. É erro de propósito. Desavergonhado erro.
10. É que o tradutor evangélico, mesmo o mestre em Hebraico, acredita que ruah, o termo hebraico para "espírito", é o Espírito Santo. Uma tolice doutrinária, mas fazer o quê? Para os israelitas e judeus, ruah não tinha nem tem nada a ver com o Espírito Santo da Trindade cristã. Os judeus o compreendiam como uma espécie de "ordenança" de Yahweh, de secretário, uma espécie de faz-tudo, até do serviço sujo.
11. É o caso aqui, em 1 Re 22,21. Yahweh quer enganar o rei Acabe. E pergunta quem vai enganá-lo. Ruah - o espírito (haruah) - apresenta-se e diz que ele irá e enganará Acabe, fazendo com que os profetas mintam para o rei.
12. E aí está o problema. Os tradutores evangélicos amam mais as doutrinas que ensinam e aprendem na Igreja do que o texto que trabalham. Como acham que se trata do Espírito Santo, e como acham que o Espírito Santo não pode mentir (nunca ouviram sermões?), então eles rejeitam o texto bíblico e o traduzem errado, de propósito, para dar a impressão de que não é "o" espírito a mentir, mas "um" espírito, isto é, como se fosse um "outro" espírito, não "o" espírito, a mentir...
13. É patológico.
14. Pobre povo "de Deus", na mão desses amantes da doutrina - falsos amantes da Bíblia. Não amam a Bíblia, não. Amam o que ensinam sobre ela. Amam suas próprias doutrinas. Amam suas igrejas - isto é, suas cartilhas de dogma (porque se as "pessoas" passam a amar outras doutrinas, eles as põem para correr - é, pois, pedra e papel que eles amam). Não amam a Bíblia. Quando a Bíblia diz algo que desagrada seu gosto, sua teologia, adulteram seu texto, traduzindo o que não está lá, para que o que se for ler fique ao gosto da boa doutrina...
15. Se amassem a Bíblia, antes que suas doutrinas, traduziriam do jeito que está, e tentariam compreender, e, se tivessem que mudar algo, mudariam a si mesmos e sua paixão pelas declarações de fé - mas é a si mesmos que amam, e, então, mudam o texto bíblico.
16. Poderíamos falar de outros erros. Até de artigo, como aquele de Rute 3,14, em que algumas - a maioria - versões evangélicas traduzem "que não se saiba que alguma mulher veio à eira", quando o Hebraico traz ha'ishshah - a mulher = esta mulher -, de modo que se deve traduzir "que não se saiba que esta (é) a mulher (que) veio à eira", ou seja, que ninguém saberia que Rute é a mulher que rondou a noite passada pelas medas de cevada, durante a festa da colheita, à espreita de Boaz...
17. Todavia, basta-me esse episódio de 1 Re 22,21 para precaver-me contra o amor dos tradutores à fé. Que amem-na até secarem os ossos, se é o que preferem. Mas eu preferia que amassem mais a verdade.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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