terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

(2012/200) Porque, para o homem, tudo o mais é coisa - e nem a religião mudou isso (porque, para ela, os homens também são coisas)



1. Para o homem, para a mulher, para o ser humano, o Homo sapiens, e isso porque ele é apenas mais um dentre seus pares, as feras, os vertebrados, as bactérias, o pombo, o lírio, o levedo, para o homem, só há ele e as coisas. Tudo quanto não é ele - tudo -, então isso tudo são as coisas. Incluídas nesse tudo estão todas as outras pessoas que, para o homem, são coisas.

2. As coisas, o não-homem, aparecem ao homem como insumo biológico, insumo antropológico. Todas as coisas, incluídas aí os homens e as mulheres outras e outros, tudo, é como pão e água. O homem é tão-somente olho e boca, e ouvido, e mão, e nariz – é ver, é cheirar, é ouvir, é pegar... e comer. Todas as outras criaturas, para o homem, são como comida, são como pasto. Não há diferença, na perspectiva do homem, entre o capim, o boi e o boiadeiro...

3. A pedra, ele a toma na mão e, com ela, faz o que quiser – até jogar no lago. A fruta, ele estica o braço, apura o tato, arranca-a do pé e a come. O bagaço, joga fora. E se vai. O coelho, a cabra, o boi, ele cria, mata e, carcará, come. O peixe, ele pesca, assa, frita, ensopa... e come. O outro homem é, para ele, também isso, comida.

4. É que a pedra não reage. Ele a continuará pegando e jogando até só haver areia... A fruta até espera ser digerida, desde que os caroços sejam devidamente devolvidos à terra fértil... O coelho, a cabra, o boi, bem, esses não exatamente gostariam de ir ao fogo, mas, por mais que façam, não sabem fazer direito. O que, no entanto, não é o caso do homem outro, que, querendo a mesma coisa que seu irmão-predador, sabe-lhe os truques, as manhas, as querenças, as táticas...

5. Quando o homem encontra o homem, encontra sua imagem refletida, e não na aparência, mas na fala, na reação, na intencionalidade. Não é a face do outro, Levinás, que me constrange: fosse – só – a face do outro, eu fritava ao azeite... É a reação do outro. É o outro fazer o que eu faria, fosse eu ele. 

6. E ele faz. Quando faz. Quando não é pedra, quando não é fruta, quando não é coelho, cabra, boi, quando não é não-homem, quando é gente, quando é um como o homem, seu predador-irmão vê nele um obstáculo, alguém com quem tem de dividir o mundo. Não pode – mais – comê-lo. Deve juntar-se a ele – se não o destruir...

7. Destrói-se. Fazem-se conluios. Divide-se o máximo com o mínimo – e destrói-se o máximo possível de irmãos-predadores. Quanto menos homens, melhor...

8. Nada há no homem, senão sua reação, senão sua força, senão seu fincar de pé, firme, no chão – alto, lá, predador, que cá vai um forte! -, que possa frear o ímpeto de predação do predador-mor. Nada. Senão ele mesmo...

9. É preciso transformar o olhar do homem. É preciso que, depois de milênios olhando o outro como coisa, ele aprenda a olhar para ele como “outro”, como “quase-mesmo”, mas “outro” – alteridade, outridade. É preciso que o homem descentralize-se, e multiplique interminavelmente os centros. É preciso que, num primeiro impulso interior, de conversão, de espontaneidade inteligente, ele se curve ao outro, como um igual-diferente, uma não-pedra, uma não-fruta, um não-coelho-cabra-boi, um não-eu-como-quase-eu.

10. Não vem de fora do mundo essa informação, Levinás. Não há um Outro a ensinar coisa alguma. Porque, Levinás, o outro é coisa, que também todo Outro sobre o outro posto torna-se coisa – como coisa os deuses são para todos os homens, coisas de usar, para si, contra os outros. Feuerbach sabia grande parte disso. Marx queria transformar o mundo – certíssimo. Mas começa pelo olhar humano. Não, “olhar humano”, não, que não existe isso: começa pela transformação do olhar de carne e osso de cada homem e de cada mulher.

11. É pois preciso começar um acidente genético na História. É preciso criar as condições ecológicas de, desenvolvendo-se homens e mulheres com olhares não-coisificantes, olhares, insisto, naturais, mas, agora, olhares humanizantes, outrizantes, alterizantes, esse nicho ecológico rompa, sistematicamente, pela educação e pela transformação material das condições de vida, e trabalho, de relação, com o passado natural de pegar, matar e comer... também o outro-coisa-para-mim.

12. A religião não logrou sucesso – e não o logrará, porque ela é alienação. Ela lida com o homem como coisa a conquistar, como pedaço de terra, como chão, como carne de altar. Está perdida a religião. Também ela deve transformar-se, converter-se. Enquanto o homem for “útil” para ela, não poderá ajudá-lo.

13. Somente um acidente biológico poderá fazer da humanidade, digo, do conjunto dos homens e das mulheres mapeados sobre a Terra, uma fraternidade – enquanto esse dia não chegar, estaremos, todos, comendo uns aos outros, mesmo quando juramos, na frente do altar, a dar a vida pela salvação dos mortos...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Igreja Batista Memorial da Posse disse...

" A religião não logrou sucesso – e não o logrará, porque ela é alienação. Ela lida com o homem como coisa a conquistar, como pedaço de terra, como chão, como carne de altar. Está perdida a religião. Também ela deve transformar-se, converter-se. Enquanto o homem for “útil” para ela, não poderá ajudá-lo."

Não concordo, porque não é a religião que aliena é a própria pessoa que escolhe isso. A religião, como a ciência, pode até controlar o acesso ao conhecimento, mas no fim das contas aceitar ou não o julgo é uma decisão.

Não quero sair em defesa da religião, mas em defesa do SER (EXISTIR)AÍ CAMINHAMOS PARA O COLETIVO E O INDIVIDUO. Antes as sociedades eram coletivas e corporativas, hoje somos indivíduos e a RELIGIÃO tem tentado dar conta dessa individualidade que traz o homem pra dentro de si limitando o entendimento das coisas ao "eu acho". AS CIÊNCIAS SOCIAIS inventaram o individuo e até hj não sabemos o que fazer com ele, pois na verdade, será que ele existe mesmo? Durante milênios o homem nunca precisou dele, por que agora ele é tão importante? Ou melhor, mais importante do que tudo?

Quero dizer que as questões contemporâneas giram em torno da INVENÇÃO do INDIVÍDUO que numa interpretação comparativa podem ser associados aos mitos do mundo mítico religioso....Alguns conceitos que baseiam a reflexão das humanidades hj são invenções de linguagem: outros exemplos: nação, economia, relações de poder, pactos sociais, tudo baseado em algo que não existe. Ai o Marx diz: "tudo que é sólido dissolve no ar" Pra piorar vem as teorias quânticas dos paradoxos e diz que outras realidades podem existir em algum lugar e que o que chamamos de real só é porque olhamos pra ele........
voltamos ao nada inicial.

Se pensarmos de forma mecânica e prática, até que a religião foi bem sucedida em manter uma ordem mundial.....mas tenho minhas dúvidas....e são mts

Cezar Uchôa Júnior

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio