sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

(2012/130) Damásio, Freud, o inconsciente e sonhar que se está voando


1. Lendo Damásio. Deparei-me, agora há pouco, com a sua informação de que, em seu último texto escrito, Freud afirmou que, para ele, o inconsciente consistia no fundo pré-consciente e evolutivo das operações do cérebro - a própria mente, antes de emergir na forma de consciência.

2. O argumento de Freud é bem simples. O cérebro tem uma história de milhões de anos de evolução. Em relação a essa história de milhões de anos, a consciência (de si) é um fenômeno recente. Isso quer dizer que, enquanto operava durante todo o tempo de sua evolução, ainda sem consciência, o cérebro manifestava, já, o fenômeno mental, inconsciente.

3. Quando a consciência emergiu (o que se deve à hipercomplexidade adquirida pelo cérebro humano), as modalidades de funcionamento do cérebro-mente inconsciente permaneceram e permanecem atuando. Assim, para o Freud maduro, o inconsciente é nada mais do que o conjunto das operações evolutivas pre-conscientes do cérebro-mente.

4. Damásio afirma, então, que esse é o único conceito de inconsciente que ele pode aceitar. E eu também.
A mais interessante contribuição de Freud para a consciência está em seu último texto, que ele escreveu na segunda metade de 1938 e deixou incompleto antes de morrer. Só recentemente vim a ler esse artigo (...) no qual ele adota a única posição sobre o tema da consciência que considero plausível. A mente é um resultado muito natural da evolução e, em vasta medida, é não consciência, interna e não revelada. Vem a ser conhecida graças à exígua janela da consciência. É precisamente meu modo de pensar (Damásio, E o Cérebro Criou o Homem, p. 221).

5. A mente opera inconscientemente o tempo todo. Não há homúnculos lá dentro, fazendo as coisas - são operações orgânicas, químicas, neuronais, neurotransmissoras, elétricas - úmidas, cavalheiros, úmidas! - que proporcionam a complexidade histórico-evolutiva desde a qual emerge a consciência, essa coisa última e frágil, como o disse Nietzsche em A Gaia Ciência.

6. Os sonhos, por exemplo...

7. Não somos "nós" os seus operadores. Não há "ninguém" operando os sonhos. São processos biológicos, quase-não-psicológicos, alguma coisa entre organização de imagens, constelações neuronais e observação do "eu" consciente, que, todavia, observador eventual, não tem controle sobre os procedimentos oníricos.

8. Um caso pessoal. Durante toda a minha infância e adolescência, sonhei que voava. Mas o final do sonho era, quase sempre, terrível. Minha avó tinha um portão de garagem. Havia pontas de lança sobre ele. Nos meus sonhos, quase que invariavelmente, eu me via obrigado a pousar ali. Era terrível, porque eu sabia, ao me aproximar em alta velocidade, que ia furar os pés. Então, fechava os olhos e o sonho acabava...

9. Às vezes, apenas voava... E, então, era mágico: uma das experiências mais extraordinárias e prazerosas de toda a minha vida - voar...

10. Passei anos sem sonhar que voava. O período é justamente aquele que corresponde à minha conversão à fé batista, década de oitenta, até o momento em que, começando a me aprofundar em crítica bíblica e teologia, fui, lentamente, corroendo a dogmática, até que não tenha sobrado um tijolo de pé.

11. Aí, voltaram os sonhos. Hoje, é normal, para mim, sonhar que estou voando. O portão desapareceu. A dificuldade, hoje, nos sonhos, é ganhar altura. Eu tenho de saltar para o ar, e fazer força, como se estivesse tentando sair do fundo do mar, em direção à superfície da água. Busco correntes de vento e, então, me apavoro, porque sei que o vento me levará para longe, uma vez que, voando no vento forte, não tenho controle. Ou subo, que é o que quero, e me perco no vento, ou não subo, e permaneço na segurança de saber onde estou - e sob relativo controle...

12. Às vezes, como na adolescência, eu apenas voo. E, outra vez, é maravilhoso.

13. Não sei exatamente o que isso significa. Sei que são operações não-conscientes, das quais, algumas vezes, sou eu mesmo observador não-participativo, conquanto me veja sabendo o que está acontecendo, vendo-me como um segundo, um não-eu-que-sou-eu.

14. Gosto de pensar que haja alguma relação entre sonhar que se está voando e a ideia da liberdade. Isso explicaria porque eles sumiram durante minha fase "fundamentalista". Ainda que eu saiba que muito "fundamentalista" se sente livre, minha percepção é outra, de modo que vejo-me interpretando esse fenômeno a meu modo.

15. Mas uma coisa sei: nesses sonhos, nunca sou "eu" o agente. Nem ninguém - nem Deus nem o diabo. São fenômenos naturais de tratamento de imagens, sensações, emoções, coisas guardadas, que o funcionamento do cérebro opera. São medos, paixões, desejos, ansiedades...

16. Como aqueles fantasmas, guardados em quartos escuros, cuja chave gostaríamos de ter derretido e lançado em lava, mas que voltam, em sonhos, para nos atormentar a memória, a carne e o sal dos olhos...

17. De algum modo, estamos lá. Mas não somos nós. Pelo contrário, "nós", quero dizer, nesse sentido, "eu", eu me constituo inescapavelmente de processos não-eu inconscientes, orgânicos, químicos, biológicos, elétricos, enzimáticos...

18. Eu, senhores, sou um instante, um fenômeno olhando para si mesmo - e disso estarrecido... Um eu, senhores, que de vez em quando, voa...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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