1. Abaixo, segue entrevista com a vice-procuradora da República, Deborah Duprat, a respeito de ações que chegaram ao STF. A vice-procuradora desacredita da possibilidade de um "ensino religioso plural", e defende a aplicação de critérios formais para o ensino religioso sob o enfoque exclusivamente histórico.
2. Antes da entrevista, minha opinião sobre o tema. Desgosto e discordo de que deva haver qualquer espécie de ensino religioso confessional no espaço público-institucional do Estado. Confissão é para os espaços confessionais - não para os espaços institucionais republicanos. Batistas ensinem a fé batista em suas escolas - nas do Estado (em qualquer âmbito - federal, estadual e municipal), não. E o mesmo sirva para toda e qualquer fé.
3. Há quem defenda um ensino religioso "plural" - uma espécie de multiconfessionalidade, mais ou menos nos moldes do "diálogo interreligioso". Eu também disgosto e discordo dessa abordagem, e vou além dos argumentos da vice-procuradora: para mim, o ensino religioso em espaço público deve ter do fenômeno religioso uma perspectiva de distância: encarar a religião única e exclusivamente como fato social, fenômeno de cultura, em nível humano, inclusive suas criações teológicas.
4. Quero dizer com isso que, a despeito de os religiosos tomarem suas doutrinas como revelações e manifestações da "verdade", o ensino religioso tratará disso como crença, sistema político-social, simbólico, humano, hermenêutico - nada mais. Não gastará dois minutos a discutir se há anjos, apenas tratará do fato de que algumas religiões acreditam neles. Jamais discutirá se há um ou vários deuses, apenas tratará do fato de que há religiões que afirmam a existência de um deus, ao passo que há outras que afirma a existência de vários. A única verdade para o ensino religioso institucional público é que há religiões.
5. Em nenhum momento, a fé pessoal - se houver - de professores e alunos há de interferir programaticamente no programa/processo. Os temas devem ser tratados em perspectiva científico-humanista: história, fenomenologia e ética. Nada mais.
6. Não acho que haja absoluta incompatibilidade entre um Estado Republicano laico e o ensino religioso - desde que nesse sentido a religião e a teologia sejam tratadas como fenômenos única e exclusivamente humanos, onde deuses, deusas, anjos, demônios, mitos, livros sagrados, ritos e tradições sejam tratados - todos - como criações humanas. Do mesmo modo como a arte, o esporte, a política, a guerra...
Vice-procuradora diz que ensino plural é impossível e defende estudo da história das religiões
Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil
Brasília – A discussão sobre a oferta de ensino religioso nas escolas públicas chegou à Justiça. Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando o espaço da religião dentro da escola tendo em vista que, desde que o Brasil deixou de ser colônia portuguesa, a Constituição define o país como laico. O tema é contraditório já que a Carta Magna também determina que as escolas públicas devam oferecer ensino religioso aos alunos do ensino fundamental, ainda que a matrícula na disciplina seja optativa.
Uma das ações, encaminhada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pede que o STF se posicione a respeito do modelo de oferta do ensino religioso adotado por alguns estados, chamado de confessional, em que o professor está vinculado a comunidades religiosas. A ação, cujo relator será o ministro Carlos Ayres Britto, defende que é inadmissível que “a escola se transforme em espaço de catequese e proselitismo, católico ou de qualquer outra religião”.
Em entrevista à Agência Brasil, a vice-procuradora Deborah Duprat, autora da ação, explica que a questão da laicidade é discutida em todo o mundo e defende que a única forma de compatibilizar a oferta dessa disciplina no país é tratar o assunto sob a ótica da história das religiões.
Leia os principais trechos da entrevista com a vice-procuradora:
Agência Brasil: Qual é o objetivo da ação direta de inconstitucionalidade?
Deborah Duprat: A nossa Constituição tem dois dispositivos: um, que existe desde 1890, determina que o Estado é laico. A laicidade é um princípio que vem desde o início da República. Outro dispositivo prevê a oferta de ensino religioso em caráter facultativo. Então é preciso compatibilizar esses dois dispositivos. Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) tem uma cláusula prevendo a oferta, em caráter facultativo, do ensino religioso, mas ela diz claramente que está vedado qualquer tipo de proselitismo. No direito existe o princípio da unidade da Constituição: não existem dispositivos antagônicos dentro dela, você precisa compatibilizá-los. Para isso você tem que fazer a leitura que a ação pretende que se faça: o Estado é laico e, quando fala na possibilidade de previsão da oferta de ensino religioso em caráter facultativo nas escolas, tem que ser ensino religioso necessariamente não confessional [não relacionado a uma determinada confissão ou religião]. Ou seja: a história, a doutrina das religiões e até a falta da religião, é preciso que essa informação seja completa. Ao lado das várias doutrinas, há também aquelas pessoas que pregam a ausência de qualquer crença como os agnósticos.
ABr: O modelo de ensino religioso confessional é incompatível com a laicidade?
Deborah: A religião com esse caráter de proselitismo, confessional, priva o aluno, que é um público formado basicamente por crianças e adolescentes, da autonomia para fazer as suas escolhas essenciais, inclusive no campo da cidadania. Pretende-se que o Estado e a criança que estuda na escola fornecida por ele esteja livre desse tipo de coerção. Essa é uma questão discutida no mundo todo. Em alguns lugares, com um caráter muito mais incisivo, ao ponto de discutir laicidade e laicismo. O laicismo é um conceito que não admite nenhum tipo de cooperação do Estado com as religiões como acontece na França [que proibiu alunas muçulmanas de usar o véu nas escolas]. Outros países, como os Estados Unidos, admitem algum tipo de cooperação, mas não admitem, por exemplo, que sejam fixados crucifixos nas dependências das escolas, porque entendem que a criança faz uma leitura de que aquela escola professa aquele tipo de religião e pode ser algo coercitivo para ela.
ABr: Como seria possível compatibilizar esses dois princípios que parecem antagônicos – laicidade e ensino religioso?
Deborah: Excluindo das escolas o ensino religioso de caráter confessional. Preservamos o dispositivo que trata do ensino religioso e preservamos a laicidade. O que vai ser ensinado é a história das religiões e não os dogmas, as crenças, aquilo que são as condições morais de cada indivíduo. E tem outro aspecto: os professores da disciplina devem ser aqueles regulares das escolas, admitidos por concurso público, e não aqueles egressos de uma ou outra confissão religiosa.
ABr: Alguns pesquisadores defendem que a inclusão do ensino religioso na Constituição foi uma “concessão” à laicidade. A senhora concorda com essa ideia?
Deborah: A Constituição é isso, ela é um produto de lutas. Ao intérprete da Constituição cabe não entender dessas lutas, mas compatibilizar aquilo que aparentemente e incompatível. São lutas divergentes então, obviamente, quem prega a religiosidade no ensino é contra a laicidade. Essas lutas têm que ser compatibilizadas pelo intérprete do direito.
ABr: A Constituição Federal e a LDB falam que o ensino religioso nas escolas tem que ser plural e abordar todas as crenças de forma igualitária. Na prática, isso não é difícil de ser garantido?
Deborah: É impossível. A religião tem esse caráter confessional. O professor que é egresso de uma determinada religião vai transmitir a crença e os dogmas daquela religião. Então, como seria esse ensino interconfessional que várias igrejas sustentam que é possível? Primeiro, não consigo imaginar o que seria na cabeça de crianças e adolescentes ora escutando dogmas de uma religião ora de outras. E quem seria esse profissional capaz de abordar aspectos de todas as religiões? Depois, como ficam os ateus? Eles também têm direito a um espaço livre desse tipo de influência.
ABr: O acordo que o Brasil assinou em 2008 com a Santa Sé reforça a importância do ensino religioso nas escolas e dá destaque ao catolicismo. Na sua opinião, qual foi a contribuição dele a esse cenário?
Deborah: Na verdade, não há muito impacto porque de certa forma ele é uma reprodução dessa antinomia [contradição] que existe na Constituição porque ele também prevê a oferta “do ensino católico e de outras religiões”, então é a mesma coisa que está na Constituição e na LDB.
ABr: Mas quando ele coloca a palavra “ensino católico” não há, de certa forma, um destaque para uma crença específica?
Deborah: Sim, mas a gente nem trata isso. Como na minha concepção é absolutamente impossível falar de ensino religioso em caráter confessional, de qualquer religião, esse detalhe é irrelevante. Pode até simbolicamente fazer uma diferença enorme, mas não cabe ao intérprete do direito dar importância a esse simbolismo.
ABr: Alguns defendem soluções mais extremas como uma proposta de emenda à Constituição que exclua das escolas o ensino das religiões. Esse seria um caminho?
Deborah: A gente espera conseguir construir esse ensino das religiões de uma forma mais razoável. A ação não pede que seja excluído o ensino religioso, na verdade, a ação é para salvar [esse dispositivo constitucional]. Por causa do princípio da unidade, que diz que não há dispositivos inconstitucionais dentro da Constituição, não tem como você dizer que esse artigo é inconstitucional, isso não existe no direito. Então é preciso salvar essa interpretação.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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