1. O livro tem quase 1.800 anos. É bem velho. Tem poucos dias a mais do que o Novo Testamento. Justino, dito "de Roma", escreveu-o nos primeiros dias da era chamada Patrística, e, Patrística, porque, junto com outros, Justino é chamado de "pai da Igreja". Diálogo com Trifão é sua obra principal. A Paulus publicou, naquela coleção de capa verde. Nele, na p. 152, eu leio:
3. É claro que Trifão, na vida real, daria uma banana bem dada para Justino, e pronto. Aliás, os judeus, de fato, deram-nos uma banana... Mas não se trata da vida real, mas de retórica apologética, na qual Trifão só pode dizer o que o autor quer que diga. Aliás, há no AT algum personagem que, diferentemente de Trifão, diga o que quer? Não, não há. Todos os personagens do AT - e do NT! - só falam aquilo que uma e uma única pessoa faz que ele diga - e essa pessoa é o autor. Fora do autor, os personagens estão soltos, como bolas de sabão, e o leitor os fará pousar, agora, onde ele, leitor, deseja. As bolas, elas mesmas não falam nada - nunca. Ou fala o autor por elas, ou falam os leitores. Justino faz-se leitor - e dono.
4. Chame-se a isso alegoria. Não há um cristão ou um judeu de então que não aprenda a fazer e faça, desde pequeno, leitura alegórica. Para um judeu, pode-se falar de midrashe, mas dá no mesmo, e com mais agravantes, porque, enquanto a alegoria apenas cria novos sentidos para velhos textos, o midrashe acrescenta sentidos e palavras, aumentando o texto.
5. Pois bem - Justino diz que sabe o sentido dos textos, mas o que ele faz é alegorizá-los. Como Mateus, que, em termos de alegoria, é campeão. Mas não está só, e ninguém há que destoe fundamentalmente dele, naqueles dias.
6. O que interessa é que Justino acha que entende, faz que entende, mas entende é nada - criou sentidos novos, alegóricos, e se acha no direito de tomar dos judeus os seus livros - vê-se aí a garra de rapina cristã, que há de se projetar não apenas sobre os textos dos judeus, mas sobre a carne humana em toda a história. Começou aí, pelos textos. Depois, vai para as posses. Depois, para as carnes. O anjo cristão (quantas vezes! [é só lhe dar poder]) é uma ave de rapina - um ovo de harpia.
7. Ora, se vale a regra de Justino, a pesquisa bíblica, acadêmica, tomou de ambos os livros. Não há um texto do AT que, lido alegoricamente pelos cristãos, sobreviva a uma leitura histórico-crítica - e por isso, apressadamente, esforçam-se os exércitos a dar por morto o caminho. A leitura histórica esforça-se por reconstruir os sentidos históricos e, se, por um lado, não tem certeza de ter conseguido, por outro, tem pleníssima certeza de que as alegorias são, elas sim, erro de interpretação (isto é, sob o regime histórico, entenda-se). Pois bem, se Justino está certo, se quem "não sabe ler" não é - mais - dono dos textos, acho que os cristãos perderam a posse de suas Escrituras judaicas... Talvez, até, as propriamente suas...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
De fato, essas palavras não foram inventadas por mim, nem enfeitadas pela arte humana. Ao contrário, trata-se de salmos que Davi cantou, ou de mensagens alegres que Isaías anunciou, ou do que Zacarias pregou e Moisés colocou por escrito. Tu os reconheces, Trifão? Eles estão escritos em vossos livros ou, melhor dizendo, não vossos, mas nossos. De fato, nós acreditamos neles. Vós, porém, por mais que os leais, não entendeis o sentido deles.2. Deixem-me evidenciar o argumento de Justino: os livros eram dos judeus, isto é, o Antigo Testamento, os textos da tradição judaica, eram dos judeus; os cristãos, entre eles, Justino, são os únicos que os entendem corretamente; os judeus até os lêem, mas não entendem; quem não entende, não pode ser dono deles; quem entende, pode; os cristãos entendem, então, os cristãos são os donos do Antigo Testamento. "São nossos", ele diz, "não vossos".
3. É claro que Trifão, na vida real, daria uma banana bem dada para Justino, e pronto. Aliás, os judeus, de fato, deram-nos uma banana... Mas não se trata da vida real, mas de retórica apologética, na qual Trifão só pode dizer o que o autor quer que diga. Aliás, há no AT algum personagem que, diferentemente de Trifão, diga o que quer? Não, não há. Todos os personagens do AT - e do NT! - só falam aquilo que uma e uma única pessoa faz que ele diga - e essa pessoa é o autor. Fora do autor, os personagens estão soltos, como bolas de sabão, e o leitor os fará pousar, agora, onde ele, leitor, deseja. As bolas, elas mesmas não falam nada - nunca. Ou fala o autor por elas, ou falam os leitores. Justino faz-se leitor - e dono.
4. Chame-se a isso alegoria. Não há um cristão ou um judeu de então que não aprenda a fazer e faça, desde pequeno, leitura alegórica. Para um judeu, pode-se falar de midrashe, mas dá no mesmo, e com mais agravantes, porque, enquanto a alegoria apenas cria novos sentidos para velhos textos, o midrashe acrescenta sentidos e palavras, aumentando o texto.
5. Pois bem - Justino diz que sabe o sentido dos textos, mas o que ele faz é alegorizá-los. Como Mateus, que, em termos de alegoria, é campeão. Mas não está só, e ninguém há que destoe fundamentalmente dele, naqueles dias.
6. O que interessa é que Justino acha que entende, faz que entende, mas entende é nada - criou sentidos novos, alegóricos, e se acha no direito de tomar dos judeus os seus livros - vê-se aí a garra de rapina cristã, que há de se projetar não apenas sobre os textos dos judeus, mas sobre a carne humana em toda a história. Começou aí, pelos textos. Depois, vai para as posses. Depois, para as carnes. O anjo cristão (quantas vezes! [é só lhe dar poder]) é uma ave de rapina - um ovo de harpia.
7. Ora, se vale a regra de Justino, a pesquisa bíblica, acadêmica, tomou de ambos os livros. Não há um texto do AT que, lido alegoricamente pelos cristãos, sobreviva a uma leitura histórico-crítica - e por isso, apressadamente, esforçam-se os exércitos a dar por morto o caminho. A leitura histórica esforça-se por reconstruir os sentidos históricos e, se, por um lado, não tem certeza de ter conseguido, por outro, tem pleníssima certeza de que as alegorias são, elas sim, erro de interpretação (isto é, sob o regime histórico, entenda-se). Pois bem, se Justino está certo, se quem "não sabe ler" não é - mais - dono dos textos, acho que os cristãos perderam a posse de suas Escrituras judaicas... Talvez, até, as propriamente suas...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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