1. Foi um exercício de criatividade cultural. Não foi o único. Houve quem não se adequasse, quem criasse outros caminhos, mas a força política da síntese, quando operada mais tarde pelo Império, sobredeterminou-se a tudo e a todos. Permaneceram as heresias, ao preço sabido.
2. De um lado, a religião semita israelita e judaica. Em todos os sentidos, ela é próximo-oriental. Mas é preciso descrever seus valores. Ela é intracosmogônica - o que significa que a sua racionalização se dá internamente à criação: Yahweh é o criador, e a criação é sua casa, tanto dele, quanto dos seus súditos e povo.
3. Yahweh é um deus que se envolve prostaticamente com sua criação. Mais do que sua casa, a criação é seu mundo. Na porta do período sacerdotal, mas trazendo ainda a marca do período monárquico, em que o 'Adam governa sobre a criação, no lugar do deus, a criação é dada como muito boa - boa mesmo.
4. Para fins sacerdotais, Adão e Eva, agora seres míticos que encarnam os camponeses e a mulher, e não mais o rei, pecadores, são expulsos do Paraíso. A vida da mulher e seu corpo e a do camponês e seu trabalho é a rememoração da ira que Yahweh tem deles, a ponto de os querer mortos, salvo, é claro, se forem ao templo, sacrificar-lhe... A criação, todavia, permanece o que é - boa, e casa de Yahweh.
5. No pensamento platônico, ao contrário, a criação sequer divina é. É obra de um segundo, e para todos os fins, prisão da alma. Mesmo a Providência platônica adormece, e, num momento desses, capturam-lhes as almas eternas e as prendem na matéria, intrinsecamente má.
6. Má e corrompida por natureza, a matéria não pode, jamais, servir como veículo de conhecimento. Pelo contrário, o apego a ela aprofunda a amnésia que a queda das almas na matéria proporciona. A Providência, todavia, trabalhará a sua salvação, fazendo com que as almas se lembrem - gnose - e retornem para o mundo das Ideias...
7. Veja que diferença: lá, Yahweh cria com as próprias mãos, sopra, e o barro fica vivo: criação viva. Cá, a criação é uma masmorra construída não por "Deus", mas por um invejoso qualquer, lodo imundo, no qual afundam as almas fantasmáticas...
8. Pois bem, Platão foi tragado por uma comunidade de judeus, em Alexandria, depois, levado para o Novo Testamento - em Paulo, por exemplo, e a síntese se deu. Como foi possível tornar a criação, intrinsecamente boa, do judaísmo, na matéria pervertida e má, do platonismo?
9. Com um golpe de genialidade, fazendo o mito da queda, de Platão, ajustar-se ao mito do Paraíso: a queda da alma corresponde, agora, à expulsão do Paraíso, e quando se lê Gênesis, não se lê mais com olhos judaicos, mas platônicos, logo, cristãos - de modo que a doutrina da criação passa a sofrer o ajustamento teológico de que o pecado de Adão e Eva funciona como um ectoplasma que corrempe a criação, e ela, que era boa, agora se tornou má... A criação judaica, agora, é como a platônica!
10. Que síntese, não? E tão forte, que a esmagadora maioria dos leitores de Gênesis enxergam-na lá: a alma "gasparzinho", o pecado de Adão como queda da alma, o pecado de Adão como potencialmente sexual/carnal/material, a contaminação da criação pelo pecado, a essencialização filosófica do pecado. Bem, nada disso é bíblico, ao menos não veterotestamentário, e, se é neotestamentário, é à força da síntese "criativa" de um judaísmo platônico, o que significa que só dá pra beijar a mão de Yahweh depois de pedir licença a Platão...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
4 comentários:
Sobra alguma coisa para acreditar na Bíblia se sua visão do cristianismo for correta?
Ainda bem que não é...rs
Galante, a coisa se resume a isso aqui: a) ou foi do jeito que falei, ou b) não foi. Só há um jeito de saber - investigar, estudar e ver como as coisas foram. Os livros estão todos aí. Há 200 anos, era proibido lê-los, e era fácil esconder essas coisas. Hoje, os livros são livres, a internet livre, tudo livre - só não descobre essas questões quem não quer. Eu quis. Descobri. É o que me basta.
Um abraço,
Osvaldo.
"Platão é um covarde perante a realidade, portanto, refugia-se no ideal" (Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos).
As idéias do bigodudo alemão me fizeram abandonar Platão.
Mas Osvaldo aqui vão algumas perguntas: Como seria um cristianismo sem dualismo, sem o "outro mundo"? Se não há outro mundo onde situar Deus? Não restaria apenas o panteísmo ou panenteísmo?
Pena que as razões do "bigodudo" não sejam lada louváveis - Nietzsche foi um aristocrata escravagista radical. Mas essa é outra história, um amor conflituoso meu.
Quanto ao outro lado. Não sei se a pergunta está corretamente formulada. Antes é preciso assentar as consequências de levar a sério as informações históricas. No fundo, não foi o outro mundo que foi destruído - apenas nossa capacidade humana de lidar com ele. Para todos os fins, lidamos com criatividade, imaginção. Mas é preciso pensar isso mais seriamente do que até pensamos.
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