terça-feira, 8 de março de 2011

(2011/151) A única função da alma é pensar, dizia Descartes - e agora, sobrou o quê?


1. Duas citações, diretas, do próprio Descartes:
a) "concluí de tudo isto que eu era uma substância cuja essência ou natureza reside unicamente em pensar e que, para que exista, não necessita de lugar algum nem depende de nada material, de modo que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é totalmente diversa do corpo e mesmo mais fácil de ser reconhecida do que este e, ainda que o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudfo o que é" (p. 67)

b) "(...) nossa alma, isto é, esta parte distinta do corpo cuja função, como acima deixei dito, consiste unicamente em pensar" (p. 89). (1)

2. Não admira o sucesso de Platão até hoje...

3. Todavia, com avanço das Ciências Cognitivas e das Neurociências, sabemos que o órgão humano responsável pelo pensamento é, de modo complexo, o cérebro - a rigor, o sistema eletro-químico-hormonal - neural - sináptico. É desde aí que emerge o sistema psicológico humano, um pé material, orgânico, outro pé imaterial, mas, ainda assim, orgânico - nos dois casos, natural.

4. Não culpemos Descartes - talvez tenha feito todo esforço pessoal. Hoje, ainda estamos cravados em erros que somente daqui a cem anos - ou mais! - se revelarão como tais, e terão de nós a mesma imagem que agora tenho de Descartes, lendo essas declarações...

5. Tem mais: Pedro, eventualmente o apóstolo, talvez alguém se valendo de sua autoridade, tratou certas pessoas como ignorantes, dizia ele, cioso de sua consciência da verdade, porque, segundo ele, elas não criam que a terra fora tirada da água - pela Palavra de Deus - e que no meio da água permanecia (cf. 2 Pd 3,5). Chamou-as de ignorantes. A rigor, ignorante era ele, já que, agora sabemos, a Terra - nem a "terra" - subsiste no meio da água - antes flutua no vácuo, ou assenta-se sobre o corpo rochoso do planeta. Pedro, seja lá quem for, baseava-se num mito cosmogônico tornado doutrina verdadeira por força de sistemas gnóstico-religiosos: mas estava errado, como Paulo, quando achava que Jesus voltaria... logo... Ora, se o escritor bíblico pode errar - como errou!, como erraram! - quanto mais licença tem para errar nosso pobre filósofo francês - tanto quanto nós, logo saberemos, cedo ou tarde.

6. O fato é que sabemos, agora, que é o "cérebro" - a rigor, nosso conectoma (connectome) o responsável pelo pensamento e, ai!, ai!, pela nossa noção pessoal de "eu" - o que, a rigor, é um desdobramento da instalação viva do ser vivo no ecossistema como centro de mundo, de modo que mesmo a percepção/consciência do "eu" traduz uma materialidade biológica, orgânica, de fundo. O "eu" exprime-se imaterialmente, mas nada num mar de substâncias telúricas imprescindíveis...

7. Numa aula de Epistemologia, um aluno perturbou-se profundamente. Ali estava um professor de Teologia a ensinar (eu, ensinar? Não ensino nada - apenas comunico informações: quem desejar, aprenda, se quiser; se ninguém desejar, não posso ensinar, sou inútil) que não há alma. Tão perturbado estava, perguntou-me: "Professor, o senhor está dizendo que não há alma?", e eu lhe respondi, dizendo que, primeiro, eu não estava dizendo nada, eram os cientistas cognitivos e os neurocientistas os que diziam, eu apenas transmitia, e, segundo, não, não estava dizendo que não há alma, estava apenas considerando que, uma vez que é o conectoma humano que pensa, alguém tem que arrumar alguma coisa pra alma fazer, porque, a julgar por Descartes, a alma ficou sem nada pra fazer, já que a única coisa que ela fazia era... pensar...

8. Agora, refletindo sobre tudo isso, sobre as declarações de Descartes, a pergunta do aluno, sua perturbação, vem-me à mente a ideia de que, afinal, Descartes não levasse isso tão a sério, mas talvez soubesse que, dizendo-o, deixariam-no trabalhar em paz... Quem sabe?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO
(1) René Descartes, Discurso sobre o Método. São Paulo: Hemus, 1978.

10 comentários:

Anônimo disse...

Você foi mesmo fisgado pela Teologia Liberal, hein? ;-)

Gosto muito do seu Blog e dos seus textos.

Minha Teologia é Calvinista, mas gosto de ler sobre outras teologias.

Mas essa falta de respeito dos liberais com a Bíblia Sagrada às vezes é difícil de aceitar.

Um abraço

Peroratio disse...

Galante, minha Teologia está longe - muito longe - de ser "liberal". De modo que você não está correto ao dizer que fui fisgado pela Teologia liberal. No máximo, eu poderia ser classificado como um pós-liberal, mas no sentido de ampliar o que de radical há no "projeto" liberal: porque o liberalismo teológico clássico ainda está longe de ser científico-humanista, conquanto namore com suas premissas, e eu me classificaria como um teólogo em tentativa de compatibilização com as Ciências de modo geral.

Quanto ao desreipeito à Bíblia por parte dos liberais, como não sei do que você está falando quando fala de liberais, já que me classificou como um, e não sou, não posso ajuizar.

Obrigado pela visita e pelo comentário.

Um abraço,

Osvaldo.

Anônimo disse...

Prezado Oswaldo, ok, então você é um pós-Liberal! heheh
Quase acertei.

"Um Deus sem ira conduziu homens sem pecado a um reino sem julgamento por meio de ministrações de um Cristo sem cruz" - H. Richard Niebuhr

Você concorda com a definição de Niebuhr para o Liberalismo? Você se encaixa nela?

Um abraço e parabéns pelos textos.

Peroratio disse...

Galante, Karl Barth é um pós-liberal, conquanto eu não goste nem um pouco da saída que Barth sobrepos à de seu antigo professor. Com isso, quero apenas dizer que a chave para ler o que eu disse não é a expressão pós-liberal, que em si é ambígua, mas o aprofundamento da radocalidade - o Liberalismo interrompeu a tarefa cedo demais, porque o Liberal é um tradicional esclarecido, digamos assim, mas, acima de tudo, mais tradicional do que esclarecido, e o esclarecimento, ali, chega até onde o frio da água não incomoda demais o baixo ventre. Não sei se me faço entender...

Outro problema grave da crítica à crítica - parte-se do pressuposto que a crítica bíblica e teológica é correlata do afrouxamento moral e ético. Outro equívoco. Um cordão de equívocos, porque se parte dos discursos pré-montados, sempre insuficientes para dar conta da complexidade do real.

Imoralidade não é patrimônio necessário do Liberalismo - os cristianismos - todos -, as igrejas todas, estão cheias de imoralidade.

Mas os liberais que respondam por si - se você for capaz de achar um: e já aviso, no Brasil, não tem liberais. Nem um. E, se tem, estão escondidos.

Um abraço,

Osvaldo.

Anônimo disse...

Oswaldo, desculpe, então você se classifica mais como Barthiano, nesse caso, Neo-Ortodoxo, certo?

Ainda estou lendo sobre Barth e Brunner, mas pelo pouco que sei foi uma reação ao Liberalismo.

Tem um viés existencialista, um entendimento truncado da Revelação e é universalista.

Neo-Ortodoxo não é tão ruim... subiu no meu conceito! rs

Um abraço do irmão calvinista

Alexandre

Peroratio disse...

Galante, Galante - eu, um barthiano? Não, não. Não soube me expressar, então...

Pena, vou cair no seu conceito... de novo...

Um abraço,

Osvaldo.

Anônimo disse...

Osvaldo, então não é Neo-Ortodoxo?

É escorregadio? rs

Bebe no liberalismo e na Neo Ortodoxia?

Não tens rótulo?

Peroratio disse...

Galante, eu escrevo num site (www.ouviroevento.pro.br) e num blog (www.peroratio.blogspot.com). Que seja suficiente ler o que lá escrevo e se julgue o que penso pelo que lá escrevo - não será fácil rotular-me, mas, se a questão for mesmo importante, basta ler-me.

Um abraço,

Osvaldo.

Anônimo disse...

Osvaldo, desculpe se o irritei.

É que como bom calvinista gosto de definições.

Você parece rotular quem não pensa como você como fundamentalista.

Por isso gostaria de saber como se define.

Não estou aqui a fim de polemizar, nem fazer você perder seu tempo.

Inté qualquer hora...

Peroratio disse...

Pensei que eu havia me referido a mim mesmo como fundamentalista, com o que, primeiro, não rotulei diretamente ninguém - indiretamente, sim - e, segundo, não recusei rótulo. Fui um fundamentalista, hoje, não sou.

E não basta?

Um abraço,

Osvaldo.

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